São Paulo, terça-feira, 01 de abril de 2008

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Análise/"Bienal do Whitney'e "Gustave Courbet"

Longe da vanguarda de Duchamp, Bienal em NY exibe diversão

MARCO GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Aberta no início de março, em Nova York, a prestigiosa Bienal do Whitney conta, neste ano, com 81 artistas e se expande para outros espaços da cidade como o Armory, na Park Avenue com a rua 69. Armories são edificações feitas no século 19 para regimentos militares, termo apropriado para abrigar a vanguarda, que por sua vez remete à estratégia militar.
Em 1913, com o "Armory Show", situado na Lexington com a rua 25, Nova York abriu definitivamente as portas para a arte moderna. A obra mais polêmica e celebrada foi o "Nu Descendo a Escada", do francês Marcel Duchamp (1912), trabalho que despertou pouca atenção na França, sendo recusada pela tropa de choque cubista (da qual seus irmãos mais velhos faziam parte) em um salão promovido por eles.
A partir do "Armory", Duchamp adquiriu uma notoriedade inédita e passou a viver boa parte do seu tempo na nova metrópole que tinha a vantagem, segundo ele, de não ter o peso da tradição. Logo, Duchamp passou a ter um papel-chave na formação visual deste país.
O projeto de fazer uma arte inovadora, aparentemente imune à tradição e ao museu e que busca um contato com a vida, perdura como mote de vanguarda até hoje.
Entretanto, o primeiro movimento genuinamente americano ocorre com o expressionismo abstrato, que toma como referência a Escola de Paris, em especial Picasso e Matisse, ao contrário de Duchamp.
É com a arte pop norte-americana que o pintor Duchamp voltou à cena para ficar até hoje como parâmetro para o que há de mais "up-to-date" na arte contemporânea.

Erotização do olhar
Como todo grande artista, Marcel Duchamp permite várias interpretações de sua obra.
Talvez uma das mais instigantes maneiras de entender sua amplitude possa ser vista não na Bienal do Whitney, mas na retrospectiva que o Metropolitan faz atualmente da obra de Courbet.
Sabe-se que Duchamp condenava a arte feita depois de Courbet por ser demasiadamente realista e retiniana. Como contraponto, Duchamp buscava uma forma de fazer arte que erotiza o olhar.
Em sua obra final, "Etant Donné", que permaneceu inédita até sua a morte, em 1968, Duchamp faz referência ao lado obscuro até então da obra de Courbet, notadamente às suas obras eróticas, como, por exemplo, a célebre "Origem do Mundo", de 1866, que retrata apenas a região pubiana de uma mulher, quadro que Lacan guardava a sete chaves.
Nesta exposição inesquecível de Courbet, podemos ver dispositivos óticos como o estereoscópio, que cria ilusões óticas em três dimensões de fotografias eróticas e que foram utilizadas posteriormente na concepção da grande obra final de Duchamp. Jogar com as ilusões óticas é algo recorrente na arte, basta citar como exemplo a perspectiva. Mas jogar com desilusões é um fenômeno contemporâneo.
Ao percorrer a bienal deste ano, vemos dois procedimentos básicos nas operações artísticas: a colagem e a mistura dos gêneros e técnicas.
As obras, de maneira geral, utilizam materiais distintos e inusitados, que vão do Gatorade a flores, como na obra de Phoebe Washburn. Mas a estratégia recorrente é enganar o espectador.
Quando se espera ver uma pintura, na verdade depara-se com uma fotografia simulando a pintura, e vice-versa. O mesmo ocorre com filmes que voltam a explicitar o fotograma etc. Muitas obras foram feitas para serem instaladas no espaço do Whitney ou no do Armory. Neste último espaço glorioso, onde a biblioteca-sala foi projetada pela Tiffany's Company, é difícil superar a beleza arquitetônica do próprio espaço, exceto por Lisa Sigal, que fez uma instalação contundente no pavilhão central do Armory praticamente vazio (aliás, o vazio parece em voga nos dias de hoje).
Em uma das enormes fachadas internas do ginásio, Lisa bloqueou algumas portas e janelas com compensados coloridos. Em outros, utiliza uma luz intensa vermelha de modo que o espaço é transfigurado pelo uso cromático.
O processo inverso ocorre no Whitney: em uma sala pequena, ela cria uma parede onde bloqueia a luz de tal maneira que só pode ser vista mediante as frestas da parede. Neste caso, em vez de ilusória, a experiência visual é reveladora, bem como nas fotografias de Luise Lawer, nas projeções de Amy Granat e Drew Heitzler ou na escultura de Ruben Ochoa.

Pão nosso de cada dia
O tema recorrente desta bienal são as mazelas do cotidiano, a arte se alimenta do pão nosso de cada dia.
Ao invés de colocarem o objeto de arte em suspensão, em atrito com o espaço do museu como faz Duchamp, onde um "ready made" é e não é uma obra de arte, neste caso vários objetos cotidianos se tornam artísticos pelo fato de estarem no museu: um terno, bonecas, flores etc.
Neste lugar, pode-se até fazer terapia com o artista para aliviar a tensão do dia-a-dia, ou, se o espectador quiser, deixar uma lembrança de si mesmo -ele pode ter seu retrato desenhado.
As obras se tornam não mais máquinas eróticas, como um dia a vanguarda sonhou, mas dispositivos inusitados para um espectador curioso que procura diversão.


MARCO GIANNOTTI é pintor e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP


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