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A procura por um modo de ser brasileiro
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Vale a pena ler a entrevista
do cantor Nelson Gonçalves na
"Playboy" deste mês. Lamentei
bastante a morte de Tim Maia,
esse louco brasileiríssimo, capaz de enormidades memoráveis. É coisa rara, em nosso
tempo, uma personalidade pública se dando ao luxo da irresponsabilidade, do erro, da
besteira pantagruélica.
Nelson Gonçalves é uma personalidade de outro tempo.
Acha óculos escuros "coisa de
veado". Aos 78 anos, gaba-se
do próprio vigor sexual e das
dimensões do órgão que possui. O curioso é que, ao explicitar as medidas do seu pênis, ele
se encabula. A filha de Nelson
estava assistindo à entrevista.
Retira-se para deixar o pai
mais à vontade.
As proezas de Nelson Gonçalves não se limitam, claro,
ao plano priápico. Vendeu 78
milhões de discos. Foi pugilista
e cafetão. Dependente de drogas, foi preso como traficante.
Na Casa de Detenção, sua primeira atitude foi a de dar uma
surra no líder dos presos. O homem foi parar no hospital. Assim o cantor ganhou respeito
na cadeia.
"Respeito" parece ser uma
palavra importante no vocabulário de Nelson Gonçalves.
Talvez seja isto precisamente o
que Tim Maia nunca se preocupou em obter.
Estamos diante de dois tipos
opostos de cafonice. Se em ambos há vulgaridade, sendo Agnaldo Timóteo a terceira personagem a invocar, Tim Maia
instituiu o deboche, enquanto
Nelson Gonçalves se afirma como um caráter mais rodrigueano, adepto da brilhantina, da compostura e da gravata. É o cafajeste íntegro, perpendicular, frontal, indubitável.
Uso "cafajeste" no sentido
antigo da palavra. Não como
sinônimo de pulha, de desonesto, mas sim de sujeito abusado, de sedutor tangueiro e
infalível. Espécie em extinção,
na qual caberiam, quem sabe,
Bernardo Cabral ou Saulo Ramos. Capítulos de uma novela
ultrapassada, que tem por nome "Os Machos Também Choram".
O que chama a atenção em
Nelson Gonçalves é o quanto
ele é "latino" e fico pensando
se a nossa "latinidade" já não
desapareceu. Tim Maia provavelmente representou a substituição da latinidade por uma
breguice mais aberta, mais
afro-brasileira. As peças de
Nelson Rodrigues são tragédias "latinas" também; e certamente cresceram do ponto
de vista estético à medida que
retratam uma psicologia que
vai se distanciando de nós.
A "latinidade" de Nelson
Gonçalves corresponde a um
tipo de comportamento que
poderíamos descrever como ao
mesmo tempo disciplinado e
transgressivo, formal e violento, cavalheiro e cavalar. O machismo se faz sentimental e
derramado. Será que algum
dia fomos tão argentinos?
Ou espanhóis? Ou portugueses? Não é irrelevante que, na
eterna procura de nosso "caráter nacional", modelos tão estritos, estereótipos tão fortes,
tenham sido abandonados.
Tim Maia não se envergonhava, creio, de uma ou outra cena de impotência sexual. Caetano Veloso avançou no rumo
do bissexualismo; aliás que palavra feia, esta.
Nas músicas de Nelson Gonçalves, o machismo triunfa,
ainda que chore. Veja-se seu
maior sucesso, "A Volta do
Boêmio": canta-se uma vitória
do marido sobre a mulher, a
qual reconhece seu papel secundário na estrutura libidinal do narrador: ela aceita o
fato de que "depois da boêmia,
é de mim que você gosta mais."
Em "Negue", uma música
breguíssima na minha opinião, há mais gabolice masculina ainda: "negue o seu amor
e o seu carinho... que eu mostro
a boca molhada e ainda marcada pelo beijo seu."
O exemplo vem a calhar por
outro motivo também. É o da
grande correção gramatical
nas canções de Nelson Gonçalves. Ao falar em "beijo seu", o
cantor respeita a regra de que
se está usando a terceira pessoa do singular ("você") no
corpo da canção. Mas é claro
que literariamente, e não gramaticalmente, o certo seria dizer "o beijo teu".
Essa compostura gramatical
se nota em outras músicas.
Mesmo em "A Volta do Boêmio", Nelson Gonçalves parece
saber que o certo não é "boemia", com acento no "i", e sim
"boêmia", com acento no "e".
Sua interpretação determina,
assim, uma pausa:
"bô/ê/miaaa", aqui me tens de
regresso, etc., destacando o "e"
da gramática contra a prosódia brasileira.
Esse esforço de correção, convivendo com o incorretíssimo
das letras, é bem típico de um
modelo parlamentar, de uma
estrutura política brasileiríssima, onde o deputado corrupto
ou o demagogo mais frenético
são os mais estritos e legalistas
seguidores do vernáculo. É um
mundo de brilhantina e dós de
peito.
Mas a arte de Nelson Gonçalves está em outro aspecto. Está
na suavidade com que ele emite as consoantes, e na sonoridade de suas vogais.
Ele nunca pronuncia o "t", o
"d" ou o "r" ao modo brasileiro comum, isto é, fazendo
"tch" ou "dj", ou um agá aspirado. O seu "r" rola na língua,
o seu "t" é italianado, o seu "d"
é o do caipira; generalizando,
estas suas consoantes são mesmo "línguo-dentais", como, ao
que me lembre, prescreve a
gramática. Raramente há guturais. O gutural ele deixa para os as, os es, os ós, que parecem sempre ter agás antes e depois da emissão: hah, heh, hoh,
etc.
Esta análise está ficando
meio preciosista, e talvez
aponte apenas o que de "antigo" prevalece no jeito de Nelson Gonçalves cantar. Mas esta antiguidade não é casual,
não é inocente. Representa a
breguice em estado de gramática. Do mesmo modo, o machismo transgressor se açucara
em masoquismo: "pise machucando com jeitinho", pede o
cantor numa música, enquanto em outra afirma, confiante,
"fica comigo esta noite e não te
arrependerás".
A roda de amigos, o violão, o
abandono da mulher, a boêmia, enfim, têm conotações
suspeitas. Não é preciso ser psicanalista para perceber, em
"Meu Dilema", um fundo masturbatório no amor do poeta
pelo próprio violão. Ele declara, deprimido, ao instrumento:
"já chorei tanto tanto/ que não
tenho mais pranto/ para chorar por meu amor".
O mundo de Nelson Gonçalves é menos lúcido, menos psicanalizado, menos inteligente
do que o de Tim Maia. Há uma
poesia nessa cegueira; algo de
trágico, de jactancioso, de retórico, de solene. Há uma dose
enorme de sofrimento na vida
desse homem. De certo modo,
ele "deu a volta por cima" nesse sofrimento -leia a entrevista de "Playboy"- ao se valorizar burramente e, ao mesmo
tempo, ao se valorizar inteligentemente.
Ele age um pouco como o
Brasil. Celebramos nossas falhas como se fossem virtudes.
Nelson Gonçalves é singularmente acrítico diante dessa estratégia. Tim Maia era lúcido
para percebê-la. Mas, entre o
deboche de um e o empolado
de outro, entre a unção magra
de Nelson Gonçalves e o sacolejo demente de Tim Maia, está a nosso cargo descobrir o
modo mais reto de ser brasileiro.
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