São Paulo, quarta, 1 de abril de 1998

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A procura por um modo de ser brasileiro

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Vale a pena ler a entrevista do cantor Nelson Gonçalves na "Playboy" deste mês. Lamentei bastante a morte de Tim Maia, esse louco brasileiríssimo, capaz de enormidades memoráveis. É coisa rara, em nosso tempo, uma personalidade pública se dando ao luxo da irresponsabilidade, do erro, da besteira pantagruélica.
Nelson Gonçalves é uma personalidade de outro tempo. Acha óculos escuros "coisa de veado". Aos 78 anos, gaba-se do próprio vigor sexual e das dimensões do órgão que possui. O curioso é que, ao explicitar as medidas do seu pênis, ele se encabula. A filha de Nelson estava assistindo à entrevista. Retira-se para deixar o pai mais à vontade.
As proezas de Nelson Gonçalves não se limitam, claro, ao plano priápico. Vendeu 78 milhões de discos. Foi pugilista e cafetão. Dependente de drogas, foi preso como traficante. Na Casa de Detenção, sua primeira atitude foi a de dar uma surra no líder dos presos. O homem foi parar no hospital. Assim o cantor ganhou respeito na cadeia.
"Respeito" parece ser uma palavra importante no vocabulário de Nelson Gonçalves. Talvez seja isto precisamente o que Tim Maia nunca se preocupou em obter.
Estamos diante de dois tipos opostos de cafonice. Se em ambos há vulgaridade, sendo Agnaldo Timóteo a terceira personagem a invocar, Tim Maia instituiu o deboche, enquanto Nelson Gonçalves se afirma como um caráter mais rodrigueano, adepto da brilhantina, da compostura e da gravata. É o cafajeste íntegro, perpendicular, frontal, indubitável.
Uso "cafajeste" no sentido antigo da palavra. Não como sinônimo de pulha, de desonesto, mas sim de sujeito abusado, de sedutor tangueiro e infalível. Espécie em extinção, na qual caberiam, quem sabe, Bernardo Cabral ou Saulo Ramos. Capítulos de uma novela ultrapassada, que tem por nome "Os Machos Também Choram".
O que chama a atenção em Nelson Gonçalves é o quanto ele é "latino" e fico pensando se a nossa "latinidade" já não desapareceu. Tim Maia provavelmente representou a substituição da latinidade por uma breguice mais aberta, mais afro-brasileira. As peças de Nelson Rodrigues são tragédias "latinas" também; e certamente cresceram do ponto de vista estético à medida que retratam uma psicologia que vai se distanciando de nós.
A "latinidade" de Nelson Gonçalves corresponde a um tipo de comportamento que poderíamos descrever como ao mesmo tempo disciplinado e transgressivo, formal e violento, cavalheiro e cavalar. O machismo se faz sentimental e derramado. Será que algum dia fomos tão argentinos?
Ou espanhóis? Ou portugueses? Não é irrelevante que, na eterna procura de nosso "caráter nacional", modelos tão estritos, estereótipos tão fortes, tenham sido abandonados. Tim Maia não se envergonhava, creio, de uma ou outra cena de impotência sexual. Caetano Veloso avançou no rumo do bissexualismo; aliás que palavra feia, esta.
Nas músicas de Nelson Gonçalves, o machismo triunfa, ainda que chore. Veja-se seu maior sucesso, "A Volta do Boêmio": canta-se uma vitória do marido sobre a mulher, a qual reconhece seu papel secundário na estrutura libidinal do narrador: ela aceita o fato de que "depois da boêmia, é de mim que você gosta mais."
Em "Negue", uma música breguíssima na minha opinião, há mais gabolice masculina ainda: "negue o seu amor e o seu carinho... que eu mostro a boca molhada e ainda marcada pelo beijo seu."
O exemplo vem a calhar por outro motivo também. É o da grande correção gramatical nas canções de Nelson Gonçalves. Ao falar em "beijo seu", o cantor respeita a regra de que se está usando a terceira pessoa do singular ("você") no corpo da canção. Mas é claro que literariamente, e não gramaticalmente, o certo seria dizer "o beijo teu".
Essa compostura gramatical se nota em outras músicas. Mesmo em "A Volta do Boêmio", Nelson Gonçalves parece saber que o certo não é "boemia", com acento no "i", e sim "boêmia", com acento no "e". Sua interpretação determina, assim, uma pausa: "bô/ê/miaaa", aqui me tens de regresso, etc., destacando o "e" da gramática contra a prosódia brasileira.
Esse esforço de correção, convivendo com o incorretíssimo das letras, é bem típico de um modelo parlamentar, de uma estrutura política brasileiríssima, onde o deputado corrupto ou o demagogo mais frenético são os mais estritos e legalistas seguidores do vernáculo. É um mundo de brilhantina e dós de peito.
Mas a arte de Nelson Gonçalves está em outro aspecto. Está na suavidade com que ele emite as consoantes, e na sonoridade de suas vogais.
Ele nunca pronuncia o "t", o "d" ou o "r" ao modo brasileiro comum, isto é, fazendo "tch" ou "dj", ou um agá aspirado. O seu "r" rola na língua, o seu "t" é italianado, o seu "d" é o do caipira; generalizando, estas suas consoantes são mesmo "línguo-dentais", como, ao que me lembre, prescreve a gramática. Raramente há guturais. O gutural ele deixa para os as, os es, os ós, que parecem sempre ter agás antes e depois da emissão: hah, heh, hoh, etc.
Esta análise está ficando meio preciosista, e talvez aponte apenas o que de "antigo" prevalece no jeito de Nelson Gonçalves cantar. Mas esta antiguidade não é casual, não é inocente. Representa a breguice em estado de gramática. Do mesmo modo, o machismo transgressor se açucara em masoquismo: "pise machucando com jeitinho", pede o cantor numa música, enquanto em outra afirma, confiante, "fica comigo esta noite e não te arrependerás".
A roda de amigos, o violão, o abandono da mulher, a boêmia, enfim, têm conotações suspeitas. Não é preciso ser psicanalista para perceber, em "Meu Dilema", um fundo masturbatório no amor do poeta pelo próprio violão. Ele declara, deprimido, ao instrumento: "já chorei tanto tanto/ que não tenho mais pranto/ para chorar por meu amor".
O mundo de Nelson Gonçalves é menos lúcido, menos psicanalizado, menos inteligente do que o de Tim Maia. Há uma poesia nessa cegueira; algo de trágico, de jactancioso, de retórico, de solene. Há uma dose enorme de sofrimento na vida desse homem. De certo modo, ele "deu a volta por cima" nesse sofrimento -leia a entrevista de "Playboy"- ao se valorizar burramente e, ao mesmo tempo, ao se valorizar inteligentemente.
Ele age um pouco como o Brasil. Celebramos nossas falhas como se fossem virtudes. Nelson Gonçalves é singularmente acrítico diante dessa estratégia. Tim Maia era lúcido para percebê-la. Mas, entre o deboche de um e o empolado de outro, entre a unção magra de Nelson Gonçalves e o sacolejo demente de Tim Maia, está a nosso cargo descobrir o modo mais reto de ser brasileiro.



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