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São Paulo, quinta-feira, 01 de maio de 2003

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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA

Das cordas, coração

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Não se façam ilusões", dizia Shostakovich (1906-75). "Não existe outra vida. Não há como." O compositor não estava falando de teologia, mas de política. E é dessa perspectiva sombria -mais sombria que o normal para quem viveu sob o regime soviético- que se escuta uma obra como o "Quarteto nš 8", apresentado em versão para orquestra de cordas pelos The Trondheim Soloists, anteontem na Sala São Paulo.
Composto em 1960, o "Quarteto" foi dedicado "à memória das vítimas do fascismo e da guerra". Serve sozinho de contraponto às ambiguidades pessoais de Shostakovich em suas relações com o regime de Stálin e sucessores. O uso de um tema de quatro notas -DSCH, no sistema alemão- funciona como assinatura para essa música de fantasmagorias, marcada por notas veladas que sobrevivem à pressão e cantilenas que resumem em meia dúzia de compassos a imensidão do que não se pode dizer.
Os noruegueses tocaram Shostakovich com tamanha eloquência que a gente quase fica com pena de o programa não ter sido todo desse calibre. Quase: porque, se o resto era fácil, não quer dizer que não tenha sido tocado com exuberância, extraindo música de onde nem havia tanto assim.
Quem sai de casa entusiasmado porque vai escutar concertos para trompete e cordas de Haendel, Albinoni e Telemann? Mas a verdade é que os Trondheim fazem um rock e tanto do barroco, e o trompetista Ole Edvard Antonsen faria grande música de uma nota só.
Aliás, fez: no bis, uma fanfarra de Stan Friedman, onde o trompete parece estar à frente e atrás de si, graças às mudanças de timbre e embocadura.
Idade média da orquestra: uns 26 anos. Tocam de pé, os moços de preto, sem gravata, as loiras de blusa étnica e saia comprida azul da cor dos fiordes. Abriram a noite diplomaticamente, com o "Ponteio" para cordas de Cláudio Santoro (1919-89); mas não fazem nada por mera diplomacia. Ao primeiro acorde, enchem a sala de som, e a energia do grupo não esmorece jamais.
Enquanto Antonsen descansava, deram uma interpretação eletrizante da "Sinfonia para Cordas nš 10" de Mendelssohn (1809-47).
"Não se façam ilusões", dizia Shostakovich. Não estava falando só de política, mas de estética. Depois de tanta leveza, sua música ganhou outro peso nas profundezas de um dó. E, depois disso, ganhou outro sentido também a alegria de Grieg (1843-1907), num bis que não era mais deste mundo, ou chegava a ele por direito, como pela primeira vez.


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