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MÚSICA ERUDITA/CRÍTICA
Das cordas, coração
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Não se façam ilusões", dizia Shostakovich (1906-75). "Não existe outra vida. Não
há como." O compositor não estava falando de teologia, mas de
política. E é dessa perspectiva
sombria -mais sombria que o
normal para quem viveu sob o regime soviético- que se escuta
uma obra como o "Quarteto nš
8", apresentado em versão para
orquestra de cordas pelos The
Trondheim Soloists, anteontem
na Sala São Paulo.
Composto em 1960, o "Quarteto" foi dedicado "à memória das
vítimas do fascismo e da guerra".
Serve sozinho de contraponto às
ambiguidades pessoais de Shostakovich em suas relações com o regime de Stálin e sucessores. O uso
de um tema de quatro notas
-DSCH, no sistema alemão-
funciona como assinatura para
essa música de fantasmagorias,
marcada por notas veladas que
sobrevivem à pressão e cantilenas
que resumem em meia dúzia de
compassos a imensidão do que
não se pode dizer.
Os noruegueses tocaram Shostakovich com tamanha eloquência que a gente quase fica com pena de o programa não ter sido todo desse calibre. Quase: porque,
se o resto era fácil, não quer dizer
que não tenha sido tocado com
exuberância, extraindo música de
onde nem havia tanto assim.
Quem sai de casa entusiasmado
porque vai escutar concertos para
trompete e cordas de Haendel, Albinoni e Telemann? Mas a verdade é que os Trondheim fazem um
rock e tanto do barroco, e o trompetista Ole Edvard Antonsen faria
grande música de uma nota só.
Aliás, fez: no bis, uma fanfarra
de Stan Friedman, onde o trompete parece estar à frente e atrás
de si, graças às mudanças de timbre e embocadura.
Idade média da orquestra: uns
26 anos. Tocam de pé, os moços
de preto, sem gravata, as loiras de
blusa étnica e saia comprida azul
da cor dos fiordes. Abriram a noite diplomaticamente, com o
"Ponteio" para cordas de Cláudio
Santoro (1919-89); mas não fazem
nada por mera diplomacia. Ao
primeiro acorde, enchem a sala de
som, e a energia do grupo não esmorece jamais.
Enquanto Antonsen descansava, deram uma interpretação eletrizante da "Sinfonia para Cordas
nš 10" de Mendelssohn (1809-47).
"Não se façam ilusões", dizia
Shostakovich. Não estava falando
só de política, mas de estética. Depois de tanta leveza, sua música
ganhou outro peso nas profundezas de um dó. E, depois disso, ganhou outro sentido também a alegria de Grieg (1843-1907), num bis
que não era mais deste mundo, ou
chegava a ele por direito, como
pela primeira vez.
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