São Paulo, sábado, 01 de maio de 2010

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LIVROS

Crítica/"Verão"

Coetzee sonha com "futuro brasileiro" para seu país

Utopia integra novo livro de "memórias ficcionais" do Prêmio Nobel sul-africano

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

A ntes de lançar "Verão" nos EUA, o escritor sul-africano J.M. Coetzee divulgou na revista "Harper's" um longo trecho do capítulo "Adriana", que tinha como personagem central uma bailarina brasileira, exilada na África devido à ditadura. A publicação do livro, classificado como a terceira parte das "memórias ficcionais" do escritor, revelou outra surpresa ao leitor brasileiro.
Em dado momento da obra do Prêmio Nobel de 2003, conta-se que o protagonista, J.M. Coetzee, sonhava com um "futuro brasileiro" para a África do Sul, atormentada por conflitos étnicos. "Ele ansiava por um dia em que todo mundo na África do Sul não se chamasse de nada, nem de africano, nem de europeu, nem de branco, nem de negro (...) Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil e os brasileiros", diz o trecho.
Na nomenclatura da obra de Coetzee, 70, "Verão" ("Summertime") continua as rememorações de "Infância" (1997) e "Juventude" (2002). O novo livro se concentra nos anos 70, época de acirramento das tensões políticas na África do Sul, como também da maturidade do autor. Nas duas primeiras obras, o escritor optou por referir a si mesmo na terceira pessoa. Em "Verão", utiliza recurso ainda mais complexo. Cria um duplo, o escritor J.M. Coetzee, em muito semelhante a si mesmo, autor famoso, ganhador do Nobel, mas que, já no início do livro, está morto.
A reconstituição da vida do falecido Coetzee é o projeto de um pesquisador britânico, Mr. Vincent, que faz cinco longas entrevistas com personagens do passado do escritor -quatro mulheres e um homem. O livro é constituído principalmente dessas conversas, cada uma ocupando um capítulo, com o nome do entrevistado: "Julia", vizinha de Coetzee; "Margot", sua prima; "Adriana", a brasileira; "Martin", um colega da universidade; e "Sophie", uma professora francesa.
Das entrevistas emerge, assim, um escritor chamado Coetzee, incomodado com sua origem africâner, deslocado em seu país, incapaz para a vida prática e desajeitado para as coisas do amor e do sexo -um "frouxo", como diz Margot, um sujeito "sem corpo", como fala Julia, "um pequeno homem sem importância", como afirma Adriana. Os relatos da vida mesquinha, das sucessivas derrotas existenciais e das frustradas relações amorosas ocupam uma grande parte do livro, mas não são o que ele tem de mais forte.
O que há de extraordinário em "Verão" é a sua arquitetura prismática, que impede uma visão unívoca e linear do personagem J.M. Coetzee, ao apresentá-lo de diferentes perspectivas, por meio de diversas vozes. Tudo isso, conduzido por uma escrita desafetada, truncada, que encontra na forma coloquial da entrevista um meio de desmontar o narcisismo das "memórias" e a própria autoridade do autor.
O protagonista-autor que surge das conversas é um sujeito apequenado, sujeito a julgamentos impiedosos, objeto de suspeição contínua. "Ele era mesmo um grande escritor?", pergunta Adriana.
Além disso, "Verão" se faz num ponto indistinguível entre fato e ficção. Elementos autênticos da vida de Coetzee se misturam com outros, imaginários. O recurso da entrevista transforma Coetzee em personagem da narrativa dos próprios entrevistados, que são, por sua vez, uma matéria ficcional do escritor Coetzee. "E se formos todos ficcionistas, como o senhor chama Coetzee?", pergunta Sophie.
O atrito entre as perspectivas e as narrativas produz sucessivos movimentos de exteriorização do(s) personagem(ns) para fora de seu pequeno mundo, imbricando ardilosamente o pessoal e social, o psicológico e o político, a biografia e a história coletiva -mais uma das qualidades deste livro sofisticado, muito atual e de leitura arrebatadora e emocionante.


VERÃO

Autor: J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44,50 (280 págs.)
Avaliação: ótimo




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