São Paulo, quinta-feira, 01 de junho de 2006

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NINA HORTA

O desvio do porco sério

Na casa de vocês, além de sumirem livros, há o fenômeno das receitas que se degradam?

VOCÊS PERDEM livros, assim, dentro de casa? Uma hora está na estante, outra hora, não? Passei e passo a maior parte de minha vida caçando livros perdidos. Ou arrumando estantes. De vez em quando, acho que as duas atividades, perder e procurar, são desculpas para não fazer o que preciso: a tradução, a matéria, o cardápio... Primeiro tem que estar tudo achado e arrumado, para depois enfrentar o batente.
Na semana passada foi a vez de sumir um livro chamado "O Porco Sério" ("The Serious Pig"), do John Thorne. O assunto é comida do Maine. Gosto desse escritor, ele sim é sério, completamente americano, preocupado com a comida típica, enroscado nos detalhes, radical, lúcido, inteligente.
Agora, digamos, quem poderia ter interesse por um porco sério? Quem roubaria ou desviaria um livro sobre um porco sério? Desisti da pesquisa e fui no clique da Amazon. Mal encomendei, estava na porta, frete caríssimo. Dois dias, um fenômeno.
 
E, relendo as receitas dele, me lembrei de coisas tão simples que minha mãe fazia quando estava com pressa e que caíram no esquecimento. Uma era a fritada. Cozinhava batatas, descascava, cortava em rodelas grossas. Fritava umas lingüiças numa frigideira de ferro, escorria a gordura, punha lá as batatas, as lingüiças em rodelas também e uns ovos batidos por cima. Temperos, tipo sal, que me lembre não tinha cebolas nem tomates, mas vai ver, tinha. E deixava ficar até queimar as beiradas e grudar um pouco no fundo. O melhor era este queimadinho.
E também mini-batatas, bem pequenas mesmo -nem tenho visto tão miúdas. Jogava na frigideira e fritava com casca. Punha sal grosso por cima, servidas na hora, acompanhando carne. Ficam feias, mas tinham um sabor todo especial.
Outra coisa que fazíamos em casa era um feijão doce, não aquele com coco, mais parecido com o Boston Baked Beans, do livro do John Thorne. Era chamado de Non Boston, Non Baked, Non Beans, tão diferente era da receita original. Feijão comum, na panela, e não no forno, com uma colherinha de pó de mostarda e um tanto de açúcar a gosto. Tem gente que junta um tipo de molho de tomate, um ketchup. O nosso não tinha. Dava certo, era bom.
 
Na casa de vocês, além de sumirem livros, há o fenômeno das receitas que se degradam até se tornarem irreconhecíveis? Começa boa, todo mundo adora, vai-se dando um fenômeno com a torta de bananas, com a panqueca... meses depois a gororoba está incomível, sofreu tantas modificações que perdeu a identidade e nem adianta tentar consertar. Murió, não tem mais solução.
 
Ah, mas voltando ao porco, perdi esse e ganhei um livro novo, da Cosacnaify, uma coletânea de contos onde está "A Festa de Babette", de Karen Blixen. "Anedotas do Destino". Não me lembro os Oscars que o filme ganhou, mas deveria ter ganhado o melhor roteiro adaptado, é uma historinha seca, o frio da aldeia deixa você entanguido, escuta-se o crepitar da lareira, sente-se a segurança de se comer e beber bem numa boa mesa, a cara quente, vermelha de prazer contido. Babette gasta o dinheiro que ganhou na loteria para fazer um jantar perfeito. E no caso do livro e do filme não acontece como nas receitas. Nenhum dos dois desandou.
 
Outro dia, comentei "O Julgamento de Paris", quando numa degustação às cegas em Paris, em 1976, os vinhos americanos levaram à melhor, e hoje leio que o feito se repetiu. Passo adiante a informação e o site www.jancisrobinson.com, onde o feito é comentado à exaustão. Durante 15 dias ela está oferecendo um "free trial"... Para quem gosta do assunto, vale a pena.


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