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NINA HORTA
O desvio do porco sério
Na casa de vocês, além de sumirem livros, há o fenômeno das receitas que se degradam?
VOCÊS PERDEM livros, assim,
dentro de casa? Uma hora está na estante, outra hora,
não? Passei e passo a maior parte de
minha vida caçando livros perdidos.
Ou arrumando estantes. De vez em
quando, acho que as duas atividades,
perder e procurar, são desculpas para não fazer o que preciso: a tradução, a matéria, o cardápio... Primeiro
tem que estar tudo achado e arrumado, para depois enfrentar o batente.
Na semana passada foi a vez de sumir um livro chamado "O Porco Sério" ("The Serious Pig"), do John
Thorne. O assunto é comida do Maine. Gosto desse escritor, ele sim é sério, completamente americano,
preocupado com a comida típica,
enroscado nos detalhes, radical, lúcido, inteligente.
Agora, digamos, quem poderia ter
interesse por um porco sério? Quem
roubaria ou desviaria um livro sobre
um porco sério? Desisti da pesquisa
e fui no clique da Amazon. Mal encomendei, estava na porta, frete caríssimo. Dois dias, um fenômeno.
E, relendo as receitas dele, me lembrei de coisas tão simples que minha
mãe fazia quando estava com pressa
e que caíram no esquecimento. Uma
era a fritada. Cozinhava batatas, descascava, cortava em rodelas grossas.
Fritava umas lingüiças numa frigideira de ferro, escorria a gordura,
punha lá as batatas, as lingüiças em
rodelas também e uns ovos batidos
por cima. Temperos, tipo sal, que me
lembre não tinha cebolas nem tomates, mas vai ver, tinha. E deixava
ficar até queimar as beiradas e grudar um pouco no fundo. O melhor
era este queimadinho.
E também mini-batatas, bem pequenas mesmo -nem tenho visto
tão miúdas. Jogava na frigideira e
fritava com casca. Punha sal grosso
por cima, servidas na hora, acompanhando carne. Ficam feias, mas tinham um sabor todo especial.
Outra coisa que fazíamos em casa
era um feijão doce, não aquele com
coco, mais parecido com o Boston
Baked Beans, do livro do John Thorne. Era chamado de Non Boston,
Non Baked, Non Beans, tão diferente era da receita original. Feijão comum, na panela, e não no forno, com
uma colherinha de pó de mostarda e
um tanto de açúcar a gosto. Tem
gente que junta um tipo de molho de
tomate, um ketchup. O nosso não tinha. Dava certo, era bom.
Na casa de vocês, além de sumirem
livros, há o fenômeno das receitas
que se degradam até se tornarem irreconhecíveis? Começa boa, todo
mundo adora, vai-se dando um fenômeno com a torta de bananas,
com a panqueca... meses depois a gororoba está incomível, sofreu tantas
modificações que perdeu a identidade e nem adianta tentar consertar.
Murió, não tem mais solução.
Ah, mas voltando ao porco, perdi esse e ganhei um livro novo, da Cosacnaify, uma coletânea de contos onde
está "A Festa de Babette", de Karen
Blixen. "Anedotas do Destino". Não
me lembro os Oscars que o filme ganhou, mas deveria ter ganhado o
melhor roteiro adaptado, é uma historinha seca, o frio da aldeia deixa
você entanguido, escuta-se o crepitar da lareira, sente-se a segurança
de se comer e beber bem numa boa
mesa, a cara quente, vermelha de
prazer contido. Babette gasta o dinheiro que ganhou na loteria para
fazer um jantar perfeito. E no caso
do livro e do filme não acontece como nas receitas. Nenhum dos dois
desandou.
Outro dia, comentei "O Julgamento
de Paris", quando numa degustação
às cegas em Paris, em 1976, os vinhos americanos levaram à melhor,
e hoje leio que o feito se repetiu. Passo adiante a informação e o site
www.jancisrobinson.com, onde o
feito é comentado à exaustão. Durante 15 dias ela está oferecendo
um "free trial"... Para quem gosta
do assunto, vale a pena.
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