São Paulo, domingo, 01 de julho de 2007

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Flip consagra o escritor-celebridade

Festa literária de Paraty, que começa na quarta, segue tendência de festivais em que autores "globetrotters" dão "show'

Escritores comentam atual necessidade de freqüentar eventos literários em diversos países para promover seus livros

EDUARDO SIMÕES
MARCOS STRECKER
SYLVIA COLOMBO

DA REPORTAGEM LOCAL

Não é à toa que o encontro literário de Paraty, que começa na próxima quarta-feira na cidade fluminense, tem nome e status de festa. A Flip chega à sua quinta edição seguindo uma transformação internacional no modo como a literatura é consumida no planeta.
Em sua natureza tido como atividade solitária, o ofício de escritor cada vez menos tem a ver com a idéia de um sujeito entretido em seu mundo particular, sentado numa escrivaninha ou à sombra de uma árvore, estudando ou refletindo em busca de inspiração. Tampouco os leitores têm tido no hábito de ler, como antigamente, uma experiência íntima e reflexiva.
A literatura virou show. Cada vez mais as editoras pedem aos escritores que façam parte de um jogo em que têm de vender seus livros em eventos internacionais, com palestras, entrevistas e atividades interativas com o público. Os leitores, por sua vez, já aceitaram a idéia de serem fãs de escritores-celebridade, reconhecidos não só por sua literatura, mas por sua capacidade de subir num palco e entreter uma platéia.
O time de autores que desembarca na Flip na semana que vem não é diferente. Para grande parte deles, Paraty é apenas mais uma parada de um crescente circuito de festas, festivais e que tais literários.
O escritor angolano José Eduardo Agualusa, que, só neste ano já esteve na Itália e na França e estuda convites do Fórum das Letras de Ouro Preto e da Fliporto (Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas) diz que é difícil dizer "não" quando é convidado a falar num lugar como Paraty, onde se pode, ao mesmo tempo, tirar "pequenas férias".

"Gosto de performance"
Para o britânico Will Self, outro freqüentador de festas literárias internacionais, existe mais pressão do mercado hoje para que o escritor assuma um papel de showman.
Mas ele defende a estratégia das editoras para expor seus produtos. "A cada 40 segundos, um livro está sendo publicado no mundo!" Self se diz confortável com um microfone na mão. "Já estudei pra ser ator, fiz comédia "stand-up" e toquei numa banda de rock. Gosto de performances."
Arroz-de-festa assumido dos eventos literários nacionais, Marcelino Freire, que apresentará na Flip um show inspirado no livro "Cantos Negreiros", acha que os festivais são uma chance de um autor conquistar mais leitores. "Hoje, para uma pessoa ler um livro seu, precisa abandonar mais de 120 canais de TV, o DVD e seus extras, os sites pornográficos etc. e tal. Eu vou atrás, sim, buscar esse leitor à unha."
Neste ano, a Flip recebe a figurinha fácil da vez no circuito internacional, o novato Ishmael Beah, serra-leonês de 26 anos. Antes de chegar a Paraty, o autor terá ido lançar "Muito Longe de Casa - Memórias de um Menino Soldado", em Berlim, Paris, Roma e Nova York.
Dos EUA, a agente de Beah disse que ele não estaria disponível para dar entrevistas antes de chegar aqui justamente por estar "viajando intensamente".
Mas será que tantas viagens não atrapalham a produção dos autores? Será que eles não deveriam usar o tempo gasto em festivais para exercer seu ofício, ler e escrever?
"Viajar só atrapalha se o escritor deixar. Se você está a trabalhar num livro novo e acha que não deve sair, não deve aceitar ir a um encontro. É importante dizer não às vezes", diz Agualusa.
O angolano considera que, se o autor for descuidado, as viagens podem virar um tiro no pé. "Se o escritor não produz, deixa de ser convidado porque não tem produção que chame a atenção dos leitores."
A espanhola Rosa Montero já havia apontado o problema na Flip de 2004. A escritora disse que tinha começado a escrever porque não conseguia falar. E que hoje, curiosamente, precisava falar para continuar escrevendo. Também comparou os escritores a "estrelas de rock, que viajam o tempo todo".

Opinião sobre tudo
Um caso exemplar é o do escritor polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007). Ele passou a vida viajando para escrever e, no final dela, já não agüentava mais a idéia de estar constantemente "on tour".
Em entrevista em dezembro do ano passado, disse: "Antigamente, um escritor podia deixar uma obra de cem volumes. Hoje, se ele fizer meia dúzia de livros está ótimo, pois o resto de seu tempo é tomado por viagens para promover suas próprias publicações. É constante a demanda da sociedade para que comentemos o noticiário, as guerras, o terror. Coisas sobre as quais às vezes não estamos muito por dentro".
Como Kapuscinski, o português António Lobo Antunes não gosta da idéia de ser uma "figura institucional", que opina sobre variados temas externos à sua obra.
Lobo Antunes já declarou que não tem tempo para a "parte mundana" que acompanha a literatura. "Não faço promoção, viajo pouco, o menos que posso", disse o escritor.
Para o crítico Silviano Santiago, que estará na Flip, a era do escritor-celebridade é um fato. "Mas trata-se de uma tendência já estabelecida na indústria cultural. Já acontece com o cinema, com a música. E só agora chega à literatura."
O escritor, ator e roqueiro Will Self acha que, mesmo que os eventos literários passem a ser comparáveis a espetáculos, falta muito para que a literatura possa se igualar ao showbiz. "Quem dera! Se fosse assim haveria mais grana! Acho que a literatura hoje parece mais com os primórdios do cristianismo, quando se lutava por fiéis contra as forças da Babilônia."


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