São Paulo, quinta-feira, 01 de agosto de 2002

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GASTRONOMIA

Lino Villaventura põe a mesa

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Os assuntos de moda costumam durar pouco, la donna é mobile... Fui ver o Lino Villaventura naquela longínqua semana de desfiles e, mesmo com 15 dias de atraso, rendo aqui minha homenagem ao estilista, que continua costurando bem, mas que para minha surpresa também cozinha.
Dessa eu não sabia, fui lá ver roupas e não eram roupas, era um grande tabuleiro de doces, espumas de claras batidas, merengues, alfenins rendilhados, suspiros de amêndoas, todas as cores pastéis dos macarrons, o rosado das frutas quase maduras, a casca das blusas cobrindo somente a polpa, aflorando a pele sedutora das mulheres, os seios apontando em transparências, vazamentos. Como diria qualquer mulher, perua ou não: des-lum-bran-te. Deslumbrante -"Houaiss"-, que turva a vista por excesso de luz ou brilho, ofuscante, que maravilha, que impressiona por suas qualidades raras ou superiores, fascinante, que revela suntuosidade, luxuoso, faustuoso-, mas assim mesmo simples. It's fascination, I know...
A assessoria dava crédito a Klimt, na inspiração. Pensei em Sonja Knips, Serena Lederer, Margareth Wittgenstein, Fritza Riedler, eu sei, eu vi, eu pesquisei, mulheres vestidas de algodão-doce, vapores, luzes aquosas, poeiras cósmicas, mas só os nomes delas já eram agrumes, azedos, agressivos, picantes.
E o Lino, convenhamos, tem tão pouco a ver com Viena, apesar de açucarada.
Não, inspirou-se só, assim de leve. Passou o olho no Klimt, assaltou-o, criou por cima, Klimt veio dar nas praias do Ceará, com carteira modelo 19, abainhando seus arabescos com fios de ovos, e sua Judith com a cabeça de Holofernes, polvilhada de ouro e canela, tinha ressaibos de sereia, de Iansã.
Branco, azul, lavanda, rosa, verde, amarelo e bronze. Entranhas de creme, cascas de ovos, fitas de coco verde.
Uma beleza fina, um virtuosismo de chef toqué, de monge com suas iluminuras, arte de papel recortado, rendilhado, desenhos de açúcar fundido.
Apesar de diáfanas e soltas, as saias se enroscavam levemente nas pernas como aquele final de pequenas ondas que morrem, cansadas, borbulhando ainda, mansas. E as ranhuras miúdas das palmeiras, as preguinhas que já despontavam na última coleção, tomaram conta, são a base dos pontos dourados, dos brilhos, dos melindres.
Tudo vivo, se mexendo, se dobrando, se virando, se encostando, desligando e amarrando, beleza pura de açúcar cândi, arte filigranada, matéria da terra trabalhada em ritos religiosos, perfeitos.
Quase que não dá para acreditar. Arte em alféolos de flores, borboletas em tremeliques, beijos de dondon, laços de amor, arrufos, sonhos, mimos. No ar, limão de cheiro, na boca um gosto de passas, a alma toda lambuzada de mel de abelhas de bronze, coleiras de ouro e pedras, Higéia.
Quebrando a doçura, o andar duro das mulheres-soldados, a suspeita de um capacete segurando os cabelos, apoio para a estrutura de açúcar, tão suave que poderia se quebrar, se derreter, o romantismo podado pela postura e pela magreza. Magras, ai que magras!
Os homens másculos, atentos, fortes por dentro, sem tempo de temer a morte, roupas frouxas, um simples cobrir, despojados, lambareiros -"Houaiss"-, aqueles que gostam de comer lambarices -"Houaiss"-, docinho ou qualquer iguaria saborosa, apresentada de forma delicada. Lambisqueiros.
Lino Villaventura pôs a mesa.

ninahort@uol.com.br



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