|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
comentário
Bulcão deixa herança a ser admirada
ALFREDO GASTAL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Morreu Athos
Bulcão. Brasília
está órfã. Essas
palavras poderiam dar o
tom de um panegírico provavelmente meloso.
Athos, onde quer que esteja agora, provavelmente
num céu católico, religião
à qual se dedicou toda a vida, não iria gostar muito
de uma coisa assim. Ele
era sério, tímido, porém
com um humor afiado.
Simples, cândido no seu
estado natural. Vez por
outra um lampejo de irritação enquanto calmamente produzia seus azulejos, seus painéis de mármore, seus quadros.
Athos era carinhoso, talvez uma de suas qualidades mais evidentes e mais
ocultas.
Um fato de sua vida não
posso esquecer. Há muitos
anos, ofereci em minha casa um jantar para o dramaturgo franco-romeno Eugène Ionesco, que visitava
Brasília. Convidei apenas
Athos, o pintor Glenio
Bianchetti e sua mulher,
Ailema. Estes chegaram
cedo e, para nossa surpresa, Athos aparece em seguida dirigindo, algo que
eu nunca havia visto. Irritado, contou que achava
Ionesco, que ele conhecera em Paris, um chato.
Ao contrário de Athos,
Ionesco não só se lembrava dele, mas se encantara
com seu gênero turrão.
Athos, pelas dúvidas, tomou doses de uísque; falava mal o francês e se esquivava do objeto de sua birra. Esse Athos, que não se
manifestava com muita
freqüência, é um dos
Athos que não poderei esquecer. Já o vejo resmungar sobre as próprias cermônias fúnebres: "E precisava tanta coisa?".
O artista não se julgava
acima dos outros mortais.
Entrava em sua casa como
entrava na casa do marceneiro.
Cidade do efêmero
Sua herança fica numa
cidade carente ainda de
obras de arte. Do mercado
das flores ao Itamaraty, ela
está aí para o povo admirá-la. Temo por sua sobrevivência, pois Brasília é ainda a cidade do efêmero,
das elites e dos "unhappy
ends" (finais infelizes) nas
artes. Mas, ainda assim,
Athos e seus amigos vão
seguir nessa batalha por
espaços democráticos e
mais cultura para o povo.
ALFREDO GASTAL, 67, é superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Brasília
Texto Anterior: Artista Athos Bulcão morre aos 90 Próximo Texto: Arte pública: Praça em SP recebe esculturas do artista italiano Emendabili Índice
|