São Paulo, sábado, 1 de agosto de 1998

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A Escócia declara sua independência literária

O lançamento de "Filth", a mais recente novela de Irvine Welsh, de "Trainspotting", confirma a nova onda da literatura escocesa, que rejeita o "inglês normal' para transcrever o sotaque do país nos livros


DENISE BOBADILHA
especial para a Folha, em Londres

O lançamento de "Filth", novo livro de Irvine Welsh, nas próximas semanas, marca a hora da virada para os escritores escoceses. Welsh é autor de "Trainspotting" e foi o primeiro escritor contemporâneo a ser best seller escrevendo numa nova língua -a transcrição do inglês falado com o peculiar sotaque escocês.
Hoje, uma nova geração de autores está alcançando repercussão internacional com orgulho de fazer literatura escocesa. Em comum, além da língua e do amor à pátria, eles dividem o passado proletário e a obsessão por cenários contemporâneos, recheado de uso de drogas e violência.
Saíram de suas mesas de trabalho no momento certo: no final dos anos 90, três séculos depois de "unir" sua coroa à inglesa, a Escócia cansou do silêncio passivo. Há inclusive um pacífico movimento separatista organizado no país.
"Filth" trata da podridão das instituições por meio do retrato do cotidiano de Bruce Robertson, um policial violento, racista, sexista e hipócrita. Como nas obras anteriores do escritor de 40 anos, a referência às drogas é constante.
Ele passa trotes obscenos para a mulher de um parceiro de trabalho e depois se oferece como voluntário para achar o tarado; ele força uma jovem traficante de drogas a fazer sexo oral nele.
Verme
Se "Trainspotting" era inovador semanticamente, "Filth" tem suas atrações gráficas. O segundo personagem do livro não é uma pessoa, e sim um verme, mais especificamente uma solitária, que age como a consciência de Robertson. É ela que tenta tirar o pouco de humanidade que pode existir no policial. A solitária percorre o livro lançando seus pensamentos por trilhas tortuosas sobrepostas ao texto já impresso; assim, vários trechos ficam apagados.
O verme, aparentemente, consegue causar menos repúdio que Robertson. O personagem é mais um na galeria de abjetos fictícios que o escritor parece conhecer muito bem na vida real.
Nascido em Leith, cidade decadente colada a Edimburgo, ele conviveu desde cedo com o submundo. No final dos anos 70, morou em Londres, trabalhando como pedreiro e pintor. De volta à Escócia, conheceu a heroína e, de sua convivência de 18 meses com a droga, tirou a experiência que geraria "Trainspotting".
Na virada dos anos 90, Welsh conheceu o ecstasy e credita à droga toda a mudança em sua vida. Já relativamente estabelecido -ele trabalhou como agente imobiliário e foi funcionário público-, Welsh escreveu "Trainspotting" e o lançou em 1993.
Três anos depois, o filme dirigido por Danny Boyle baseado em seu livro virou divisor de águas no cinema e na própria cultura britânica. Só naquele ano, o livro vendeu mais de 800 mil cópias.
Papa da geração química
A fama tirou o sossego do escritor e ele se viu com o título de "papa" da geração química, aquela que adotou o ecstasy e as longas jornadas de música eletrônica como sentido da vida. Não por coincidência, Welsh começou uma carreira paralela como DJ e produtor de música eletrônica.
No campo literário, depois de "Trainspotting" Welsh produziu contos para todas as compilações de "literatura química" possíveis. Escreveu três coletâneas próprias -duas delas, "The Acid House" (1994) e "Ecstasy" (1996), tiveram seus nomes impostos pela editora para preencher o novo nicho no mercado.
Apesar de seu trabalho anterior a "Filth", a peça "You'll Have Had Your Hole", ter tido fraca recepção no Reino Unido, Welsh continua transformando em ouro -quase- tudo que toca. Histórias selecionadas de "The Acid House" viraram filme.
Dirigido por Paul McGuigan, "The Acid House" estreou no Festival de Cannes. Muitos críticos deixaram a sala de exibição em protesto contra suas cenas de violência com mulheres e crianças.
Polêmica, como o próprio escritor já aprendeu, pode ser a chave do sucesso. O filme "The Acid House" é o primeiro trabalho de Welsh como roteirista.
Atualmente, ele trabalha em um novo filme e colabora com um amigo na produção de um documentário sobre o primeiro jogador de futebol negro britânico.
Pelo segundo ano consecutivo, Welsh passa parte do verão europeu em Ibiza, na Espanha, a meca dos clubbers, trabalhando como DJ. Os direitos de filmagem de "Filth" foram vendidos, mas Welsh não escreverá o roteiro.



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