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LIVRO - LANÇAMENTO
Em 'Arco-Íris', Pynchon entrelaça real e imaginário
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Num ensaio
sobre paranóia
e literatura, Leo
Bersani, um dos
mais celebrados
críticos literários dos Estados
Unidos, supõe
que a fama estrepitosa, a partir de
1973, de um livro difícil como "O
Arco-Íris da Gravidade", de Thomas Pynchon (finalmente publicado no Brasil com uma ótima tradução de Paulo Henriques Britto),
se deve em parte à sua paranóia.
Mas só em parte, porque o próprio crítico é o primeiro a concordar que, para além de todas as explicações sociológicas e extraliterárias possíveis, este é, no mais rigoroso sentido da palavra, um livro extraordinário.
É verdade que também é -para
usar uma formulação um tanto
eufemística- um romance extremamente complexo (você nunca
sabe ao certo se o que está lendo
faz parte da realidade em que vivem os personagens ou dos delírios, sonhos, fantasias e alucinações de algum deles, que você
também não pode determinar
com absoluta certeza qual), e o fato de ter se transformado em culto
para uma legião de jovens fãs,
num mundo já dominado pela impostura do marketing e de uma literatura pop e fácil, torna o fenômeno ainda mais interessante.
Por um lado, Pynchon pode ser
visto como um resquício hippie,
com o seu ponto de vista conspiratório em que o indivíduo entra
como cobaia nas mãos dos interesses econômicos e do poder de
um cartel de grandes corporações,
o que explicaria sua capacidade de
seduzir um certo imaginário paranóico que ao final dos anos 60 esperava o seu messias e a publicação da sua bíblia.
A paranóia parece ter se tornado, nas últimas décadas, um gênero tipicamente americano, não só
literário, mas cinematográfico,
chegando até a diluição hollywoodiana. Uma forma de pensar o
mundo pela conspiração, que poderia muito bem ser o resultado de
uma revolta difusa, e no mais das
vezes infantil, por parte de uma
geração assombrada por uma realidade ao mesmo tempo corrupta
e puritana, temperada pelo uso de
anfetaminas e confrontada com a
ameaça da guerra e com a culpa de
representar uma potência para a
qual a bomba atômica serve de
caução não apenas simbólica.
Comparados, no entanto, à originalidade radical de um livro como "O Arco-Íris da Gravidade",
autênticos e valorosos representantes do gênero, como Don DeLillo e Paul Auster, correm o risco
de acabarem reduzidos a convencionais prosadores. Se a paranóia
é o que tenta deduzir sentidos onde não há nenhum, no esforço de
criar conexões inusitadas sob as
aparências, eliminando toda possibilidade de acaso, Pynchon a leva ao extremo ao forçá-la, paradoxalmente, na loucura excessiva e
hilariante dessas conexões, a não
fazer mais sentido algum.
Em sua radicalidade cômica, "O
Arco-Íris da Gravidade" faz a paranóia ir contra a própria paranóia. É quase impossível para o
leitor separar o que há de objetivo
do subjetivo, o real do imaginário,
a ciência do sonho, a realidade
narrativa (o que parece estar realmente acontecendo) da subjetividade dos personagens e do narrador (suas fantasias).
Tudo parece se dar nesse espaço
que Pynchon chama de "interface", a partir de preceitos pavlovianos, onde a noção de opostos
se dissolve e que por vezes lembra,
mais que um estado de inconsciência, o universo inconsequente
e de pesadelo dos desenhos animados ou dos quadrinhos.
Não é à toa que alguns fãs tenham chegado a esboçar, como
guias de leitura, tentativas de resumo do livro na Internet, uma delas
com o título significativo: "Algumas Coisas Que Acontecem (Mais
ou Menos) em "O Arco-Íris da
Gravidade'".
O tenente americano Tyrone
Slothrop e o projeto de um foguete
nazista são o que há de mais central nessa ficção descentralizada,
cheia de personagens e desdobramentos (como se a escrita abrisse
o cérebro de cada um deles, projetando para fora, em telas sucessivas, as paisagens imaginárias que
se passam no interior de suas cabeças) e desvios que podem incluir até a narrativa de mortos invocados por processos mediúnicos.
Quando pequeno, Tyrone Slothrop havia sido usado como objeto
de estudo por um cientista behaviorista de Harvard, que agora, ao
final da Segunda Guerra Mundial,
parece trabalhar para os alemães.
O estudo dizia respeito às ereções
do bebê Tyrone. Curiosamente,
suas ereções de adulto servindo
em Londres sob o bombardeio
alemão parecem anunciar, com
antecedência, o local onde os mísseis nazistas vão cair na cidade.
Considerado um fenômeno incompreensível, mas de substancial utilidade para os interesses
dos cartéis industriais por trás da
guerra ("no fundo uma operação
de compra e venda"), o herói passa a ser seguido e observado por
todos os lados, sob uma atmosfera
que tem muito de Fritz Lang, ao
longo de sua trajetória até a Zona
(a Alemanha do pós-guerra) em
busca de uma verdade -se é que
se pode continuar falando nesses
termos- sobre si mesmo.
"O Arco-Íris da Gravidade" (o
título faz menção à trajetória dos
foguetes) poderia ser lido como a
fantasia infantil e um tanto narcisista de um garoto americano obcecado pelo próprio pênis (é evidente a simbologia fálica dos foguetes, ainda mais em sua associação com as ereções do protagonista) e bombardeado pela cultura
pop e por uma quantidade de informações históricas e políticas a
que não consegue dar um corpo
unitário e lógico.
Mas seria reduzir esse romance
avesso às interpretações (por permitir uma infinidade, e as mais
díspares) a um ponto de vista psicanalítico simplista e a um mundo
ao qual ele tenta oferecer saídas.
"O Arco-Íris da Gravidade" é
desses livros grandiosos e generosos, que abrem para o leitor caminhos impensados, não somente
novas possibilidades de fabulação,
mas de criação de novos mundos,
ainda que seja apenas por promover, em sua exuberância narrativa,
o entendimento libertário de que
novos mundos e pontos de vista
sempre podem ser criados.
Livro: O Arco-Íris da Gravidade
Autor: Thomas Pynchon
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (792 págs.)
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