São Paulo, sábado, 01 de outubro de 2005

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RODAPÉ

Para gostar de ler

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Comentando com Máximo Górki os contos de Andersen, Leon Tolstói (1828-1910) sustentava que o dinamarquês, um solitário infeliz, na sua avaliação, cometeu um erro ao se dirigir às crianças em busca de uma compaixão rara entre os adultos. "As crianças de nada se compadecem", afirmava o autor de "Ana Karenina". Pois é para esta curiosidade inclemente da infância que seus "Contos da Nova Cartilha" estão voltados como parte do esforço pedagógico que o romancista russo desenvolveu, ao longo da segunda metade do séc. 19, juntos aos filhos dos mujiques em sua propriedade rural, Iásnaia Poliana. Trazem o duplo apelo de mostrar como se saem tanto um mestre às voltas com a essencialidade das formas simples, como o doutrinador social medindo-se com o instrumento de poder, quase sempre ideologia perversa em pílulas, que se oferece no caminho nada suave das cartilhas.
Derrubar literalmente as paredes, abolir a excessiva disciplina corporal, as tarefas obrigatórias -castigos e notas inclusive-, incorporar a vivência da natureza ao processo de conhecimento, incentivando e fundamentando a liberdade de escolha dos meninos, estes eram os pilares da escola que fundou, uma Summerhill com toques de Paulo Freire "avant la lettre", modesta, ambiciosa e libertária a um só tempo. A cartilha na edição brasileira, acompanhada de belas fotos do professor e seus alunos atravessando bosques ou em campo aberto, foi o resultado de esforço de anos e alcançou, até a morte do autor, 30 edições, iniciando milhões de pequenos russos à leitura.
Não se pode dizer que a reflexão sociológica e o engajamento social sejam momentos de exceção na obra de Tolstói. Ninguém cogitaria, por exemplo, amputar as reflexões sobre a história de "Guerra e Paz", sem receio de desfigurar o romance. Mas, para além dos méritos educativos, o que faz deste livro peculiar interessante é justamente a marca do grande escritor que, em poucas pinceladas, ganha os olhos e ouvidos ávidos dos meninos para a força formadora da narrativa. Não que recuse as matrizes tradicionais dos livros de iniciação à leitura: traz várias versões de Esopo ou similares, em si, nada especiais. Mas, mesclando a estas fábulas contos maravilhosos, casos exemplares do cotidiano russo, fragmentos sobre a diversidade entre os homens e as culturas, Tolstói abala a certeza moralizante que nelas se encerra.
Assim, um brevíssimo conto em que, ensinando a filha, uma tia rememora a dificuldade esquecida que experimentou ela mesma, quando, ainda menina, aprendia a costurar com sua mãe, ecoa em diversas outras passagens. Está também na história da imperatriz chinesa Si-Ling-Chi, que primeiro fiou a teia produzida pelo bicho-da-seda, imortalizando-se pela invenção do tecido e na da confecção das vestimentas dos esquimós, costurando roupas com agulhas de espinhas de peixes, tendões animais como linha e peles como tecido. Ressoa ainda na anedota do homem que encomendou à fiandeira fios finíssimos e, insatisfeito com o resultado, insuficiente, acaba recebendo, em resposta à reclamação, linha nenhuma, vendida como invisível de tão fina ao tolo arrogante, logrado pela esperteza da moça. A variedade de registros passando pela experiência afetiva e familiar, pelo registro etnográfico, pela descoberta da tecnologia funciona à maneira de apresentação da amplitude de mundos abertos pela palavra, mais do que mera estratégia de alfabetização. Entre o desenho lógico de um raciocínio ("Para Onde Vai a Água do Mar") e uma descrição aparentemente despretensiosa ("O Mar"), as crianças descobrem o lirismo insuspeito.
O aprendizado das diferenças ("Um Menino Conta como Perdeu o Medo dos Mendigos Cegos"), da vida ativa e do mundo prático ("Como na Cidade de Paris Consertaram uma Casa") não tolhe o espaço das primeiras epifanias da infância. Tolstói não precisa sublinhar com tintas fortes a miséria cruel por trás da história de "O Pequeno Polegar", contada sem retoques: ela transparece na proximidade das breves narrativas que exibem, sem comentar, o poder na família, as injustiças da servidão, a complexidade do mundo. Nesta cartilha, "para gostar de ler" é bem mais do que palavra de ordem vazia.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Contos da Nova Cartilha
   
Autor: Leon Tolstói
Tradução: M. Aparecida B. P. Soares
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 36 (192 págs.)


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