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RODAPÉ
Para gostar de ler
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Comentando com Máximo
Górki os contos de Andersen, Leon Tolstói (1828-1910) sustentava que o dinamarquês, um
solitário infeliz, na sua avaliação,
cometeu um erro ao se dirigir às
crianças em busca de uma compaixão rara entre os adultos. "As
crianças de nada se compadecem", afirmava o autor de "Ana
Karenina". Pois é para esta curiosidade inclemente da infância que
seus "Contos da Nova Cartilha"
estão voltados como parte do esforço pedagógico que o romancista russo desenvolveu, ao longo
da segunda metade do séc. 19,
juntos aos filhos dos mujiques em
sua propriedade rural, Iásnaia Poliana. Trazem o duplo apelo de
mostrar como se saem tanto um
mestre às voltas com a essencialidade das formas simples, como o
doutrinador social medindo-se
com o instrumento de poder,
quase sempre ideologia perversa
em pílulas, que se oferece no caminho nada suave das cartilhas.
Derrubar literalmente as paredes, abolir a excessiva disciplina
corporal, as tarefas obrigatórias
-castigos e notas inclusive-, incorporar a vivência da natureza
ao processo de conhecimento, incentivando e fundamentando a liberdade de escolha dos meninos,
estes eram os pilares da escola que
fundou, uma Summerhill com toques de Paulo Freire "avant la lettre", modesta, ambiciosa e libertária a um só tempo. A cartilha na
edição brasileira, acompanhada
de belas fotos do professor e seus
alunos atravessando bosques ou
em campo aberto, foi o resultado
de esforço de anos e alcançou, até
a morte do autor, 30 edições,
iniciando milhões de pequenos
russos à leitura.
Não se pode dizer que a reflexão
sociológica e o engajamento social sejam momentos de exceção
na obra de Tolstói. Ninguém cogitaria, por exemplo, amputar as reflexões sobre a história de "Guerra e Paz", sem receio de desfigurar
o romance. Mas, para além dos
méritos educativos, o que faz deste livro peculiar interessante é justamente a marca do grande escritor que, em poucas pinceladas,
ganha os olhos e ouvidos ávidos
dos meninos para a força formadora da narrativa. Não que recuse
as matrizes tradicionais dos livros
de iniciação à leitura: traz várias
versões de Esopo ou similares, em
si, nada especiais. Mas, mesclando a estas fábulas contos maravilhosos, casos exemplares do cotidiano russo, fragmentos sobre a
diversidade entre os homens e as
culturas, Tolstói abala a certeza
moralizante que nelas se encerra.
Assim, um brevíssimo conto em
que, ensinando a filha, uma tia rememora a dificuldade esquecida
que experimentou ela mesma,
quando, ainda menina, aprendia
a costurar com sua mãe, ecoa em
diversas outras passagens. Está
também na história da imperatriz
chinesa Si-Ling-Chi, que primeiro
fiou a teia produzida pelo bicho-da-seda, imortalizando-se pela
invenção do tecido e na da confecção das vestimentas dos esquimós, costurando roupas com
agulhas de espinhas de peixes,
tendões animais como linha e peles como tecido. Ressoa ainda na
anedota do homem que encomendou à fiandeira fios finíssimos e, insatisfeito com o resultado, insuficiente, acaba recebendo,
em resposta à reclamação, linha
nenhuma, vendida como invisível
de tão fina ao tolo arrogante, logrado pela esperteza da moça. A
variedade de registros passando
pela experiência afetiva e familiar,
pelo registro etnográfico, pela
descoberta da tecnologia funciona à maneira de apresentação da
amplitude de mundos abertos pela palavra, mais do que mera estratégia de alfabetização. Entre o
desenho lógico de um raciocínio
("Para Onde Vai a Água do Mar")
e uma descrição aparentemente
despretensiosa ("O Mar"), as
crianças descobrem o lirismo insuspeito.
O aprendizado das diferenças
("Um Menino Conta como Perdeu o Medo dos Mendigos Cegos"), da vida ativa e do mundo
prático ("Como na Cidade de Paris Consertaram uma Casa") não
tolhe o espaço das primeiras epifanias da infância. Tolstói não
precisa sublinhar com tintas fortes a miséria cruel por trás da história de "O Pequeno Polegar",
contada sem retoques: ela transparece na proximidade das breves
narrativas que exibem, sem comentar, o poder na família, as injustiças da servidão, a complexidade do mundo. Nesta cartilha,
"para gostar de ler" é bem mais do
que palavra de ordem vazia.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Contos da Nova Cartilha
Autor: Leon Tolstói
Tradução: M. Aparecida B. P. Soares
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 36 (192 págs.)
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