|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Série "Big Love" retoma fórmula com ousadia
Produção da HBO aborda família e faz retrato aberto da sexualidade e poligamia
Produzida por Tom Hanks, atração tem nomes como Bill Paxton, Chloë Sevigny, Jeanne Tripplehorn e Harry Dean Stanton no elenco
CASSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Um veículo de entretenimento para toda a família nas
suas origens, a TV americana se
tornou nas últimas décadas um
nicho peculiar da representação sem pudores das transformações desse tipo de agrupamento humano, demasiado humano.
Ao mesmo tempo, os criadores de séries, diante da necessidade constante de inovar para
manter a legião crescente de
aficionados, retomaram o esquema do grupo (que já existia
desde as origens do gênero,
com "I Love Lucy") como fórmula ficcional aparentemente
inesgotável. Pois é a base coletiva, que vai desde o ambiente de
trabalho (como em "The Office") até os sobreviventes de um
desastre aéreo (como em
"Lost"), que permite aos roteiristas explorar ao longo de várias temporadas as conexões e
desdobramentos que unem um
bom número de personagens.
Nesta fórmula, o grupo familiar disfuncional tornou-se
uma marca registrada das produções da HBO. Aquilo que já
havia dado certo com "Família
Soprano" e "A Sete Palmos" retorna agora com um grau a
mais de ousadia em "Big Love".
Num primeiro olhar, esta série chama a atenção por explorar um tema aparentemente
transgressivo como a poligamia. Por trás do recurso anedótico, o que ela trata é a dinâmica
dos relacionamentos, as estruturas de poder e de influência, o
lugar do homem, da mulher e
dos filhos em diversas fases etárias com a mesma franqueza
com que "Família Soprano"
aborda a crise do macho.
Da série criada por David
Chase a esta ficção assinada por
Mark V. Olsen e Will Scheffer
abre-se um novo passo no conceito de família. Enquanto nos
Sopranos laços sangüíneos e
criminais se indistinguiam, a
família de Bill Henrickson
constitui-se de três casas, mantidas paradoxalmente unidas
por valores de um cristianismo
fundamentalista.
Valores coletivos
Neste universo, o que mais
salta à vista é como aspirações
pessoais e valores coletivos
convivem aos trancos e barrancos. E o que é mais importante,
tanto nesta quanto nas produções anteriores da HBO, é o tratamento singular dado a cada
personagem, num efeito especular das transformações individuais dentro da sociedade
americana, em primeiro plano,
mas que se aplica a outras, como a nossa. Como outras séries
que retiram daí boa parte de
seu interesse, "Big Love" aposta de maneira quase obsessiva
nas fissuras crescentes da subjetividade contemporânea.
O retrato aberto da sexualidade (como a entrada em cena
do Viagra já no episódio piloto,
que culmina com uma situação
bastante cômica de ereção) é a
ponta mais visível desse iceberg, mas há outros, não menos
fortes, sendo trabalhados.
É o caso dos transtornos psíquicos, como as compulsões,
retratadas nas personagens
Nicki (Chloë Sevigny, memorável) e Margene (Ginnifer Goodwin). A primeira, consumida
pela fome do consumo até o limite de comprometer suas finanças; a segunda, gordinha,
aparece como uma vigilante
obsessiva do peso.
Com esse tipo de ênfase, "Big
Love" chega para integrar o primeiro time das séries de TV
que se consolidaram, como
aponta o especialista Martin
Winckler em "Les Miroirs de la
Vie" (os espelhos da vida), "como um palácio de espelhos que
reflete com acuidade os deslocamentos da sociedade, submetendo-a a deformações,
transformações e releituras
que se destinam a revelar de
modo mais claro seus fantasmas, suas ideologias e suas faces escondidas".
BIG LOVE
Quando: hoje (23h), no HBO; reprises
às terças (21h)
Texto Anterior: Ela+ele+ela+ele Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|