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NELSON ASCHER
Georges Brassens
Se um "bug" infernal apagasse do "hard drive" divino toda a cultura das Américas, qual
seria o dano infligido ao legado
do Ocidente? Tal desaparecimento deixaria uma lacuna considerável nos arquivos literários ocidentais dos últimos 150 anos, e
boa parte da ciência moderna
iria por água abaixo. Mas a filosofia, a música erudita e as artes
plásticas, apenas um pouco empobrecidas, sobreviveriam.
O maior prejuízo ocorreria nos
territórios da cultura popular e de
massas. Aqui, a contribuição do
Novo Mundo, por meio de filmes
e canções que o planeta inteiro
consome e imita, foi vital e, na
sua ausência, esses ramos dificilmente disporiam agora de uma
linguagem universal.
Cada grupo humano tem seus
compositores, instrumentistas e
cantores. Estes, porém, só exercem fascínio duradouro sobre os
próprios conterrâneos. Se bem
que às vezes surjam, aqui e ali, estilos, escolas e alguns indivíduos
cujo apelo ultrapassa as fronteiras originais, trata-se antes da exceção.
A internacionalização do consumo pressupõe a da criação, algo
mais fácil de acontecer em lugares
para onde tenham convergido
pessoas de origens diversas. A interação, graças a um convívio
prolongado, de africanos e ameríndios, europeus e asiáticos assegurou às canções produzidas nas
Américas a matéria-prima e os
recursos necessários para uma ou
várias grandes sínteses.
Nem por isso é de se jogar fora a
música popular do Velho Mundo
que, em alguns momentos do século passado, produziu obras que
mereceriam ser mais conhecidas.
A canção francesa chegou ao apogeu durante o período feliz da história do país que vai do fim da Segunda Guerra aos anos 70.
O melhor cantor-compositor
dessa época, que coincide com a
da bossa nova, foi Georges Brassens (1921-81), uma espécie de
Chico Buarque francês. Como no
caso do nosso, seus méritos são
pelo menos tão literários quanto
musicais, e sua timidez no palco
era igualmente famosa.
Filho de um pedreiro anticlericalista, Brassens nasceu em Sète,
cidadezinha mediterrânea que
também dera à luz o poeta Paul
Valéry, na região chamada Languedoc, um dos centros da poesia
trovadoresca medieval. Sua mãe,
católica devota com raízes italianas, familiarizou-o cedo com as
canções napolitanas. Brassens, no
entanto, começou escrevendo
poesia e foi somente depois da
guerra que adquiriu seu primeiro
violão.
Amigo de escritores, mestre de
um francês refinadamente simples, ele fez carreira, com seu bigode característico e o cachimbo
sempre presente, nos cabarés parisienses dos anos 50.
Enquanto o público de seus discos aumentava, o cantor chegava
(em 1963) à prestigiosa coleção
"Poètes d'Aujourd'Hui" (poetas
de hoje) e acumulava prêmios literários.
Suas letras irônicas que, voltadas sobretudo para o amor, o sexo
e a amizade, remetendo a ocorrências cotidianas e falando dos
gatos da casa, já não chocam ninguém soavam escandalosas
quando foram compostas na
França bem-comportada anterior a 1968. E, num país onde poesia e música popular se mantinham e se mantêm escrupulosamente apartadas, ele esteve entre
os raros que conseguiram, afirmando-se em ambos os campos,
abrir uma brecha nas barreiras
convencionais.
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