São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2004

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NELSON ASCHER

Georges Brassens

Se um "bug" infernal apagasse do "hard drive" divino toda a cultura das Américas, qual seria o dano infligido ao legado do Ocidente? Tal desaparecimento deixaria uma lacuna considerável nos arquivos literários ocidentais dos últimos 150 anos, e boa parte da ciência moderna iria por água abaixo. Mas a filosofia, a música erudita e as artes plásticas, apenas um pouco empobrecidas, sobreviveriam.
O maior prejuízo ocorreria nos territórios da cultura popular e de massas. Aqui, a contribuição do Novo Mundo, por meio de filmes e canções que o planeta inteiro consome e imita, foi vital e, na sua ausência, esses ramos dificilmente disporiam agora de uma linguagem universal.
Cada grupo humano tem seus compositores, instrumentistas e cantores. Estes, porém, só exercem fascínio duradouro sobre os próprios conterrâneos. Se bem que às vezes surjam, aqui e ali, estilos, escolas e alguns indivíduos cujo apelo ultrapassa as fronteiras originais, trata-se antes da exceção.
A internacionalização do consumo pressupõe a da criação, algo mais fácil de acontecer em lugares para onde tenham convergido pessoas de origens diversas. A interação, graças a um convívio prolongado, de africanos e ameríndios, europeus e asiáticos assegurou às canções produzidas nas Américas a matéria-prima e os recursos necessários para uma ou várias grandes sínteses.
Nem por isso é de se jogar fora a música popular do Velho Mundo que, em alguns momentos do século passado, produziu obras que mereceriam ser mais conhecidas. A canção francesa chegou ao apogeu durante o período feliz da história do país que vai do fim da Segunda Guerra aos anos 70.
O melhor cantor-compositor dessa época, que coincide com a da bossa nova, foi Georges Brassens (1921-81), uma espécie de Chico Buarque francês. Como no caso do nosso, seus méritos são pelo menos tão literários quanto musicais, e sua timidez no palco era igualmente famosa.
Filho de um pedreiro anticlericalista, Brassens nasceu em Sète, cidadezinha mediterrânea que também dera à luz o poeta Paul Valéry, na região chamada Languedoc, um dos centros da poesia trovadoresca medieval. Sua mãe, católica devota com raízes italianas, familiarizou-o cedo com as canções napolitanas. Brassens, no entanto, começou escrevendo poesia e foi somente depois da guerra que adquiriu seu primeiro violão.
Amigo de escritores, mestre de um francês refinadamente simples, ele fez carreira, com seu bigode característico e o cachimbo sempre presente, nos cabarés parisienses dos anos 50.
Enquanto o público de seus discos aumentava, o cantor chegava (em 1963) à prestigiosa coleção "Poètes d'Aujourd'Hui" (poetas de hoje) e acumulava prêmios literários.
Suas letras irônicas que, voltadas sobretudo para o amor, o sexo e a amizade, remetendo a ocorrências cotidianas e falando dos gatos da casa, já não chocam ninguém soavam escandalosas quando foram compostas na França bem-comportada anterior a 1968. E, num país onde poesia e música popular se mantinham e se mantêm escrupulosamente apartadas, ele esteve entre os raros que conseguiram, afirmando-se em ambos os campos, abrir uma brecha nas barreiras convencionais.


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