São Paulo, quinta-feira, 01 de dezembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COMIDA

NINA HORTA

A polenta da Santa Felicidade

Um famoso autor de livros de cozinha, inglês, escreveu sobre o seu dia-a-dia em frente ao fogão durante um ano. Um ano de fogão. A tese dele é que não tem erro comer o que está na época, saber reconhecer sua qualidade. Quem quer comer um pedaço de melancia gelada no inverno? E uma caipirinha à beira-mar, no verão, com lulas fritas, não cai às mil maravilhas?
As épocas sazonais se misturaram, se confundiram, quando há de tudo, o tempo todo. Assunto batido e muitas vezes trilhado, mas imaginem se tivéssemos aqui, de cada canto do Brasil, um livrinho humilde que fosse, da comida de cada dia, uma receita aqui, outra ali, um comentário. "Está começando a pesca dos camarões, hoje comprei o fundo de uma rede e cozinhei três camarões que vieram junto de um modo interessante. Como eram tão poucos, enchi uma cumbuquinha individual de azeite, esquentei quase até ferver, joguei dentro uma pimenta dedo-de-moça, um pouco de sal e um alho inteiro descascado, e já ia me esquecendo... os três camarões. Com casca e tudo. Depois comemos o pão mergulhando naquele azeite, que tinha o maior gosto de camarão, e, no fim, descascamos e comemos os próprios. Uma boa saladinha de rúcula ao lado, e foi um almoço dos melhores!"
Estou lançando o desafio. "Djá!" Donas e donos de casa, de restaurantes, de pensões, escrevam diariamente onde compram e o que cozinham nas suas cidades. Assim, de leve, uma menção. Como seria bom! Tudo reunido em livro só ou em livrinhos por região, o que nos daria os ingredientes brasileiros em todo o seu frescor e o que fazemos deles em casa, ou como os comemos nas ruas.
Comecem as anotações em janeiro, ou porque não agora em dezembro? Teremos lá pelo Natal de 2006 várias comidas sazonais brasileiras, comidas de alma, com nossos erros de português, nossas preferências. Ou mandem coisas esparsas mesmo, quando se entusiasmarem com a fartura e a quantidade, especificando a época, não se esqueçam.
E qual editora não vai adorar um material desses?
Já estava com esta ótima idéia na cabeça quando chegou por Sedex um embrulho do Paraná. E adivinhem o que era. Uma dissertação de mestrado, de Elsa Vieira de Souza Feder, de 2005, da Universidade do Vale do Itajaí, da pós-graduação de turismo e hotelaria. O nome da tese é bonito: "Santa Felicidade (Curitiba, Paraná): na Polenta uma História de Hospitalidade".
Não temos espaço para a resenha profunda, nem é tese para se fazer curvar o Ocidente, mas é a história de um bairro, que antes não existia e que foi povoado por Z imigrantes. Hoje é um centro de restaurantes que fazem comida vêneta. Como toda obra acadêmica, passeou pelo conceito de hospitalidade entre gregos (a faculdade é de turismo, também), principalmente na "Odisséia", comparando com o modo pelo qual o Brasil recebe seus imigrantes, e, por fim, a história hospitaleira dos restaurantes de polenta que se formaram no bairro italiano de Santa Felicidade, um lugar de turismo gastronômico conhecido em todo Brasil.
Me deu vontade de ir lá, posso imaginar os restaurantes, as famílias grandes, o serviço carinhoso, farto e barato, os domingões de polenta. Parece que é este o segredo do bairro de nome tão poético, o respeito à natureza e à cultura local.
Os imigrantes italianos tiveram todos aqueles problemas próprios da imigração, bicho-de-pé, mosquito e calor, mas não tiveram dificuldade de continuar sua tradição alimentar no Brasil, porque havia muito milho na nova terra, lugares de sobra onde cultivá-lo, e, o mais importante, encontraram uma gente hospitaleira que espelhava a deles: pobre, com valores religiosos e familiares, e uma tradição de convívio à mesa, que vieram reforçar. Chamados pelos curitibanos de "italianos cara-de-polenta" ou "gringos polenteiros", os vênetos foram em frente. Que importa, a polenta era o jeito de conservar um naco de identidade na terra nova e enchia a barriga.
A polenta era preparada em panela de ferro ou tacho de cobre, onde primeiro se colocava água com sal para ferver; aos poucos, ia sendo misturado o fubá bem fresco, sempre mexendo para não formar pelotas. Mexia-se a panela durante mais de uma hora com uma pequena pá de madeira, a mescola. Ao adquirir consistência, a polenta era retirada do fogo e despejada em uma tábua especial, chamada de panaro, onde era cortada em fatias com um fio. Era neste momento que se verificava se sua consistência estava ou não correta.
A polenta sozinha sempre foi tida como pobre, mas acompanhada por molhos cobra uma elegância nova. Acontece que o jeito de comê-la era mesmo só, simples, em pedaços, posta sobre uma chapa de fogão até ficar com uma casca, "poenta brustolà". As crianças também adoravam comer a crosta formada no fundo da panela durante o cozimento.
O prato mais tradicional era a polenta com passarinhos ("poenta e osei"), prato muito típico da cozinha vêneta. Já imaginaram a criançada de estilingue na mão e a festa em casa, triturando os ossinhos? Acabou-se o tempo, por favor não matem os passarinhos que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá, usemos o frango à passarinho, cortado miúdo, para enganar.
Elsa Vieira de Souza agora teme que naquele bairro da Santa Felicidade se romantize a Itália, sem base histórica, como acontece quase sempre em lugares muito turísticos, e que as tradições reais vênetas se percam. E a autora pede que se resgate a história cultural para que as gerações novas participem verdadeiramente do processo migratório muito bem descrito por ela.
Ah, e o livro do tal inglês que vamos ter que copiar chama-se "The Kitchen Diaries" (ed. Fourth Estate, 400 págs.; disponível no site www.amazon.com), e o autor é Nigel Slater. E o e-mail da Elsa é es.feder@terra.com.br


@ - ninahort@uol.com.br

Texto Anterior: Bom e Barato / Até R$ 30 por pessoa: Fartura garante êxito de Don Pepe
Próximo Texto: Bebida: Flichman ganha com produção repaginada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.