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COMIDA
NINA HORTA
A polenta da Santa Felicidade
Um famoso autor de livros
de cozinha, inglês, escreveu
sobre o seu dia-a-dia em frente ao
fogão durante um ano. Um ano
de fogão. A tese dele é que não
tem erro comer o que está na época, saber reconhecer sua qualidade. Quem quer comer um pedaço
de melancia gelada no inverno? E
uma caipirinha à beira-mar, no
verão, com lulas fritas, não cai às
mil maravilhas?
As épocas sazonais se misturaram, se confundiram, quando há
de tudo, o tempo todo. Assunto
batido e muitas vezes trilhado,
mas imaginem se tivéssemos
aqui, de cada canto do Brasil, um
livrinho humilde que fosse, da comida de cada dia, uma receita
aqui, outra ali, um comentário.
"Está começando a pesca dos camarões, hoje comprei o fundo de
uma rede e cozinhei três camarões que vieram junto de um modo interessante. Como eram tão
poucos, enchi uma cumbuquinha
individual de azeite, esquentei
quase até ferver, joguei dentro
uma pimenta dedo-de-moça, um
pouco de sal e um alho inteiro
descascado, e já ia me esquecendo... os três camarões. Com casca
e tudo. Depois comemos o pão
mergulhando naquele azeite, que
tinha o maior gosto de camarão,
e, no fim, descascamos e comemos os próprios. Uma boa saladinha de rúcula ao lado, e foi um almoço dos melhores!"
Estou lançando o desafio.
"Djá!" Donas e donos de casa, de
restaurantes, de pensões, escrevam diariamente onde compram
e o que cozinham nas suas cidades. Assim, de leve, uma menção.
Como seria bom! Tudo reunido
em livro só ou em livrinhos por
região, o que nos daria os ingredientes brasileiros em todo o seu
frescor e o que fazemos deles em
casa, ou como os comemos nas
ruas.
Comecem as anotações em janeiro, ou porque não agora em
dezembro? Teremos lá pelo Natal
de 2006 várias comidas sazonais
brasileiras, comidas de alma, com
nossos erros de português, nossas
preferências. Ou mandem coisas
esparsas mesmo, quando se entusiasmarem com a fartura e a
quantidade, especificando a época, não se esqueçam.
E qual editora não vai adorar
um material desses?
Já estava com esta ótima idéia
na cabeça quando chegou por Sedex um embrulho do Paraná. E
adivinhem o que era. Uma dissertação de mestrado, de Elsa Vieira
de Souza Feder, de 2005, da Universidade do Vale do Itajaí, da
pós-graduação de turismo e hotelaria. O nome da tese é bonito:
"Santa Felicidade (Curitiba, Paraná): na Polenta uma História de
Hospitalidade".
Não temos espaço para a resenha profunda, nem é tese para se
fazer curvar o Ocidente, mas é a
história de um bairro, que antes
não existia e que foi povoado por
Z imigrantes. Hoje é um centro de
restaurantes que fazem comida
vêneta. Como toda obra acadêmica, passeou pelo conceito de hospitalidade entre gregos (a faculdade é de turismo, também), principalmente na "Odisséia", comparando com o modo pelo qual o
Brasil recebe seus imigrantes, e,
por fim, a história hospitaleira
dos restaurantes de polenta que se
formaram no bairro italiano de
Santa Felicidade, um lugar de turismo gastronômico conhecido
em todo Brasil.
Me deu vontade de ir lá, posso
imaginar os restaurantes, as famílias grandes, o serviço carinhoso,
farto e barato, os domingões de
polenta. Parece que é este o segredo do bairro de nome tão poético,
o respeito à natureza e à cultura
local.
Os imigrantes italianos tiveram
todos aqueles problemas próprios da imigração, bicho-de-pé,
mosquito e calor, mas não tiveram dificuldade de continuar sua
tradição alimentar no Brasil, porque havia muito milho na nova
terra, lugares de sobra onde cultivá-lo, e, o mais importante, encontraram uma gente hospitaleira que espelhava a deles: pobre,
com valores religiosos e familiares, e uma tradição de convívio à
mesa, que vieram reforçar. Chamados pelos curitibanos de "italianos cara-de-polenta" ou "gringos polenteiros", os vênetos foram em frente. Que importa, a polenta era o jeito de conservar um
naco de identidade na terra nova e
enchia a barriga.
A polenta era preparada em panela de ferro ou tacho de cobre,
onde primeiro se colocava água
com sal para ferver; aos poucos, ia
sendo misturado o fubá bem fresco, sempre mexendo para não
formar pelotas. Mexia-se a panela
durante mais de uma hora com
uma pequena pá de madeira, a
mescola. Ao adquirir consistência, a polenta era retirada do fogo
e despejada em uma tábua especial, chamada de panaro, onde era
cortada em fatias com um fio. Era
neste momento que se verificava
se sua consistência estava ou não
correta.
A polenta sozinha sempre foi tida como pobre, mas acompanhada por molhos cobra uma elegância nova. Acontece que o jeito de
comê-la era mesmo só, simples,
em pedaços, posta sobre uma
chapa de fogão até ficar com uma
casca, "poenta brustolà". As
crianças também adoravam comer a crosta formada no fundo da
panela durante o cozimento.
O prato mais tradicional era a
polenta com passarinhos ("poenta e osei"), prato muito típico da
cozinha vêneta. Já imaginaram a
criançada de estilingue na mão e a
festa em casa, triturando os ossinhos? Acabou-se o tempo, por favor não matem os passarinhos
que aqui gorjeiam, não gorjeiam
como lá, usemos o frango à passarinho, cortado miúdo, para enganar.
Elsa Vieira de Souza agora teme
que naquele bairro da Santa Felicidade se romantize a Itália, sem
base histórica, como acontece
quase sempre em lugares muito
turísticos, e que as tradições reais
vênetas se percam. E a autora pede que se resgate a história cultural para que as gerações novas
participem verdadeiramente do
processo migratório muito bem
descrito por ela.
Ah, e o livro do tal inglês que vamos ter que copiar chama-se
"The Kitchen Diaries" (ed. Fourth
Estate, 400 págs.; disponível no site www.amazon.com), e o autor é
Nigel Slater. E o e-mail da Elsa é es.feder@terra.com.br
@ - ninahort@uol.com.br
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