São Paulo, segunda, 2 de fevereiro de 1998

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FOTOGRAFIA
Chega às livrarias 'Antropologia da Face Gloriosa', da Cosac & Naify, com 161 rostos de Carnavais cariocas
Arthur Omar cataloga êxtase brasileiro

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Arthur Omar tem elaborado uma verdadeira teoria da imagem com experiências múltiplas em cinema, vídeo e fotografia, conjugando às vezes esses meios em exibições ou instalações.
Essa tendência para desestabilizar fronteiras, inaugurada com o "metacinema" do longa "Triste Trópico", de 74, avança agora para as artes plásticas com o livro-objeto "Antropologia da Face Gloriosa", da editora Cosac & Naify, que chega às livrarias.
Catálogo do êxtase no Carnaval brasileiro, um rosário de fevereiros de 1973 a 1996, a coleção de 161 ampliações de rostos em preto-e-branco, com títulos, empurra a fotografia para a pintura -por meio de técnicas não-ortodoxas de exposição, revelação etc.
Ao mesmo tempo, a complexa intersecção de sentidos poéticos entre palavra e imagem faz de "Face Gloriosa" um livro de grande força conceitual, mais ou menos na trilha das edições idealizadas pela artista americana Barbara Kruger ("Love for Sale" etc.).
Porém enquanto Kruger investe em choques dadaístas entre as significações de imagens e palavras, gerando ruídos políticos-sociais, Omar envereda pela superposição e/ou desvelamento de signos no corpo do objeto, colocando sob seu microscópio matrizes para uma "investigação antropológica", mais do que ensaio político.
Ao mesmo tempo, como indica prefácio de Ivana Bentes para essa bela edição bilíngue português-inglês, para trazer à luz a "face gloriosa", Omar faz paralelo com a estética mística cristã -da espanhola Teresa d'Ávila ou do alemão Jacob Boehme, por exemplo.
Segundo esse paralelo, o artista estaria se encarregando de fixar, com sua câmera, o êxtase fugaz que um dia se tornará eterno nos "corpos gloriosos", ou seja, após a ressurreição.
Contudo, na obra de Arthur Omar, o êxtase espiritual partilha da mesma natureza do transe dionisíaco, produzido por "embriaguez, fascinação, paixão, comoção, desvario ou frenesi", no quadro da manifestação carnavalesca.
Os títulos acoplados às imagens sublinham o paradoxo: "Sem o Mestre É Impossível Chegar Lá", diz a linha abaixo do close de integrante de ala de índios; "Pintado para Pensar" é a sugestão sob menino mestiço pintado como nativo sul-americano; ou, ao lado de travesti empastelado de maquiagem, "Deus Pode Ser um Ator", título que remete ao teatro ritual-extático de Antonin Artaud.
Sobre o "modus operandi" para conseguir série tão extensa de imagens viscerais, o artista esclarece: "Para flagrar o êxtase que cruza o homem com velocidade vertiginosa, além de sua capacidade de tomar consciência desse estado, o fotógrafo se deixa operar possuído por seu próprio êxtase".
Segundo Omar, que pretende continuar a série este ano, apenas um clique de cada modelo é realizado: "É uma fotografia não-visual, inconsciente, à maneira do arqueiro zen, que não mira a chama da vela, mas atinge-a de olhos vendados, com um único disparo". Assim, houve filmes de 36 poses em que apenas uma foto foi aproveitada e outros, em momentos mais inspirados, que geraram até 20 ampliações.
Não há intervenção de computação gráfica, mas "apenas o velho processo fotográfico artesanal", diz o artista-xamã, que arrematou "Face Gloriosa" com um auto-retrato e um título que explicita o arrebatamento em que costuma atuar: "Não te Vejo com a Pupila, mas com o Branco dos Olhos".

Livro: Antropologia da Face Gloriosa Autor: Arthur Omar Editora: Cosac & Naify (tel. 011/864-4134) Quanto: R$ 55 (240 págs.)


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