São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TEATRO

Fraternal Companhia se arrisca em alegoria aberta

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"A Nau dos Loucos" se apresenta como uma alegoria: daí vêm seus méritos e riscos. Baseando-se na fabulosa nave medieval que percorria o Reno recolhendo os loucos, Luís Alberto de Abreu cria uma metáfora vigorosa para o Brasil, essa nau sem rumo e sem comando que, felinianamente, continua indo.
Mais próxima de "Marat-Sade" (a peça de Peter Weiss na qual loucos encenam a Revolução Francesa) do que de Artaud, a loucura aqui não pretende ser uma lírica reivindicação, mas uma codificação de dinâmicas sociais: as personagens não são indivíduos, mas sínteses de tipos brasileiros, dando continuidade à pesquisa que a Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes vem desenvolvendo em busca de uma commedia dell'arte brasileira.
Pedro Lacrau, o mestiço de Arlequim com Macunaíma, é um péssimo líder, mas com um carisma que lhe permite tudo. Peter Askalander é seu contraponto racional, prometendo o progresso da colonização européia, mas logo se revela um Dom Quixote. Entre os dois, o português Joaquim tenta instilar bom senso nos desencontros, mas, como bom testa-de-ferro, é o primeiro a arcar com as consequências.
Lá pelo meio dessa saga sincrética, são colhidos pela nau dos loucos, único destino para os desvalidos embora não lhes dê nenhuma garantia. Caótica e imensa, leva inclusive Deus no porão, um Deus desacreditado que se deixa subjugar pelo Diabo.
Para não perder o fio dessa narrativa imprevisível, Abreu lança mão dos recursos do teatro épico. Personagens saem da situação para fazer um balanço do que está acontecendo. É uma faca de dois gumes: laceia o ritmo da peça com explicações muitas vezes pouco elucidativas, mas permite ao diretor um jogo de troca de máscaras que os atores aproveitam bem.
Ágil, com uma voz poderosa, Edgar Campos diverte e se diverte com seu Pedro Lacrau, o autodiagnosticado "ciclotímico" que alterna euforia e depressão. Ali Saleh faz um Peter Askalander com menos contrastes, mas caindo às vezes num tom recitado.
O Joaquim de Aiman Hammoud, patético e de enorme empatia, remete a uma classe média intelectual que se esforça para acreditar no poder popular, mas que se sente às vezes um turista no caos. Wilson Julian, para construir seu Diabo, lança mão do farto material de sinistras figuras públicas; Mirtes Nogueira faz um Deus menos definido, talvez por absoluta falta de um salvador reconhecível a quem se remeter.
Recusando saudavelmente o maniqueísmo, a peça apresenta a anarquia brasileira não como solução utópica nem como fonte dos males, mas como antiga e constante condição da qual nunca saímos. Talvez venha daí a sensação de que a peça acaba sem chegar a nenhuma conclusão, limitando-se a refletir a perplexidade do momento político atual.
Alegoria aberta, apóia-se, para não se dispersar, na excelente cenografia de Luis Augusto dos Santos e na energia dos atores, o que lembra muito o Macunaíma de Naum Alves de Sousa e do grupo Pau Brasil. Embora confusa às vezes, a peça assume suas deficiências com a fé no taco de uma companhia que tem um longo caminho trilhado e a trilhar. Por essa viagem, vale cruzar a cidade.


A Nau dos Loucos    
Texto: Luís Alberto de Abreu
Direção: Ednaldo Freire
Onde: Paulo Eiró (av. Adolfo Pinheiro, 765, SP, tel. 0/xx/11/5546-0449)
Quando: sex. e sáb., às 20h30; dom., às 19h; até o dia 17 de março
Quanto: R$ 10




Texto Anterior: Leila Diniz: Recordações
Próximo Texto: Dança: Cia. 2 Nova Dança coloca à prova a identidade brasileira
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.