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TEATRO
Fraternal Companhia se arrisca em alegoria aberta
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
"A Nau dos Loucos" se
apresenta como uma alegoria: daí vêm seus méritos e riscos. Baseando-se na fabulosa nave medieval que percorria o Reno
recolhendo os loucos, Luís Alberto de Abreu cria uma metáfora vigorosa para o Brasil, essa nau sem
rumo e sem comando que, felinianamente, continua indo.
Mais próxima de "Marat-Sade"
(a peça de Peter Weiss na qual
loucos encenam a Revolução
Francesa) do que de Artaud, a
loucura aqui não pretende ser
uma lírica reivindicação, mas
uma codificação de dinâmicas sociais: as personagens não são indivíduos, mas sínteses de tipos brasileiros, dando continuidade à
pesquisa que a Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes vem
desenvolvendo em busca de uma
commedia dell'arte brasileira.
Pedro Lacrau, o mestiço de Arlequim com Macunaíma, é um
péssimo líder, mas com um carisma que lhe permite tudo. Peter
Askalander é seu contraponto racional, prometendo o progresso
da colonização européia, mas logo se revela um Dom Quixote. Entre os dois, o português Joaquim
tenta instilar bom senso nos desencontros, mas, como bom testa-de-ferro, é o primeiro a arcar
com as consequências.
Lá pelo meio dessa saga sincrética, são colhidos pela nau dos
loucos, único destino para os desvalidos embora não lhes dê nenhuma garantia. Caótica e imensa, leva inclusive Deus no porão,
um Deus desacreditado que se
deixa subjugar pelo Diabo.
Para não perder o fio dessa narrativa imprevisível, Abreu lança
mão dos recursos do teatro épico.
Personagens saem da situação para fazer um balanço do que está
acontecendo. É uma faca de dois
gumes: laceia o ritmo da peça com
explicações muitas vezes pouco
elucidativas, mas permite ao diretor um jogo de troca de máscaras
que os atores aproveitam bem.
Ágil, com uma voz poderosa,
Edgar Campos diverte e se diverte
com seu Pedro Lacrau, o autodiagnosticado "ciclotímico" que
alterna euforia e depressão. Ali
Saleh faz um Peter Askalander
com menos contrastes, mas caindo às vezes num tom recitado.
O Joaquim de Aiman Hammoud, patético e de enorme empatia, remete a uma classe média
intelectual que se esforça para
acreditar no poder popular, mas
que se sente às vezes um turista no
caos. Wilson Julian, para construir seu Diabo, lança mão do farto material de sinistras figuras públicas; Mirtes Nogueira faz um
Deus menos definido, talvez por
absoluta falta de um salvador reconhecível a quem se remeter.
Recusando saudavelmente o
maniqueísmo, a peça apresenta a
anarquia brasileira não como solução utópica nem como fonte
dos males, mas como antiga e
constante condição da qual nunca
saímos. Talvez venha daí a sensação de que a peça acaba sem chegar a nenhuma conclusão, limitando-se a refletir a perplexidade
do momento político atual.
Alegoria aberta, apóia-se, para
não se dispersar, na excelente cenografia de Luis Augusto dos Santos e na energia dos atores, o que
lembra muito o Macunaíma de
Naum Alves de Sousa e do grupo
Pau Brasil. Embora confusa às vezes, a peça assume suas deficiências com a fé no taco de uma companhia que tem um longo caminho trilhado e a trilhar. Por essa
viagem, vale cruzar a cidade.
A Nau dos Loucos
Texto: Luís Alberto de Abreu
Direção: Ednaldo Freire
Onde: Paulo Eiró (av. Adolfo Pinheiro,
765, SP, tel. 0/xx/11/5546-0449)
Quando: sex. e sáb., às 20h30; dom., às
19h; até o dia 17 de março
Quanto: R$ 10
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