São Paulo, quinta, 2 de abril de 1998

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CRÍTICA
Terra nacional

SÉRGIO DÁVILA
Editor da Ilustrada

Criticar "Central do Brasil" é falar tanto da carreira de seu diretor, Walter Salles, do cinema e da crítica nacionais quanto do filme.
O filme é bom. Com "Alma Corsária", de Carlos Reichenbach, "Um Céu de Estrelas", de Tata Amaral, e "Baile Perfumado", de Ferreira e Caldas, está entre os melhores brasileiros da década.
(Mesmo que a década em questão não seja das melhores, e que o cinema aqui continue renascendo e renascendo -o problema do Brasil em vários setores da cultura ainda é a saúva e o gerúndio.)
"Central" existir do jeito que é já constitui um feito; ter ganho Berlim, outro, quem vai negar? É road-movie (ou filme-estrada) competente, deve encantar grandes audiências, aqui e alhures.
Lembra um pouco, na busca paterna que já sabemos frustrada, o filme "Paisagem na Neblina", do grego Theo Angelopoulos, ainda que não tenha a mesma frieza.
Lembra ainda, principalmente nos cinco minutos finais, "Cinema Paradiso", com a vantagem de não fazer a enésima homenagem ao cinema -embora caia na mesma armadilha/truque do banho de lágrimas final e redentor.
Tem problemas -o roteiro por vezes descosturado (o personagem de Otávio Augusto incrivelmente desiste da caça ao menino no meio do caminho) e cenas gratuitas (a execução do trombadinha pelo mesmo Augusto)-, mas conta com trunfos inegáveis.
Entre eles, a direção dos atores. Salles sabe que apenas juntar as duas maiores atrizes brasileiras vivas não é garantia de nada. Pode dar um grande filme, mas pode dar também a cerimônia de entrega do Prêmio Sharp, por exemplo.
Não é o que acontece com Fernanda Montenegro e Marilia Pêra. Nos poucos momentos em que contracenam, ambas valem "Central do Brasil". E, do primeiro terço para o final, Montenegro sozinha continua valendo o filme.
Há também o achado que é o menino Vinícius de Oliveira. Um prodígio, um moleque de rua que não deve nada ao pixote de "Pixote" e ao garoto de "O Garoto".
Mas tão interessante quanto o filme é o caso Walter Salles -Walter Moreira Salles Jr. Assistimos, desde 89, à evolução de um diretor, esforçado e obstinado no desejo de tornar-se cineasta.
Vimos o yuppie da publicidade descobrir o cinema em "A Grande Arte" (89). Tudo era referência nesse comercial de cigarro Free de 90 minutos. Salles surgia (como muitos então) como filho ilegítimo e tardio do trio Wim "Paris, Texas" Wenders, Jim "Daunbailó" Jarmusch e Nelson "Cenários em Ruínas" Brissac Peixoto.
Veio "Terra Estrangeira" (95), a constatação e o registro algo ingênuos do êxodo de parte da geração burguesa sufocada sob Collor.
Agora, temos "Central do Brasil". Descobre-se que realmente há pobreza no país, um pouco como a viagem mítica que o jornalista Paulo Francis gostava de contar, quando visitou o Nordeste pela primeira vez nos anos 50.
Mas "Central do Brasil" é pela primeira vez cinema, e Walter Salles deve, sim, se revelar o cineasta que quer ser no próximo filme.
Por fim, é compreensível, embora não aceitável, que a crítica brasileira tenha gostado em uníssono de "Central do Brasil", antes mesmo de o filme ficar pronto. Há um desejo legítimo dessa crítica de que o cinema brasileiro dê certo.
É preciso dizer com todas as letras, porém, que "Central do Brasil" não é a salvação da lavoura. É água fresca em terra arrasada, e talvez seja tomado como marco nos anos vindouros, mas é só um bom e competente filme.



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