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CENTRAL DO BRASIL
"Filme é coração e mente", diz Fernanda
Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
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Em "Central do Brasil", Fernanda Montenegro é Dora, mulher que vive de escrever cartas para analfabetos
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PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
"Ator é gado", polemizava o cineasta Glauber Rocha (1939-1981).
"Pode ser, mas é gado de grande
corte, de boa carne", responde
Fernanda Montenegro, 68. Gado
de boa carne, ela é responsável por
metade da glória que o filme "Central do Brasil", de Walter Salles,
recolheu do 48º Festival de Cinema de Berlim, em que ela levou o
prêmio de melhor atriz.
Fernanda confirma a fama de
"pé-quente" à dezena de filmes de
que participou desde a estréia cinematográfica, em 65, no rodriguiano "A Falecida", de Leon
Hirszman.
"Eles Não Usam Black-Tie", do
mesmo Hirszman, inspirado na
peça homônima de Gianfrancesco
Guarnieri, levou o Leão de Ouro
em Veneza 81. "A Hora da Estrela", de Suzana Amaral, de que ela
participava, rendeu a Marcélia
Cartaxo o título de melhor atriz
em Berlim 85. Ela própria já havia
levado um "melhor atriz" num
festival italiano, por "Tudo Bem"
(78), de Arnaldo Jabor.
Em entrevista à Folha, Fernanda
discorre sobre "Central do Brasil",
cinema e teatro nacionais, política
cultural e explica por que nunca
trabalhou com líderes intelectuais
do porte de Glauber Rocha (no cinema) e Antunes Filho (no teatro).
Folha - Você costuma dizer que
faltam personagens femininas fortes à dramaturgia. A Dora de "Central do Brasil" supre essa carência?
Fernanda Montenegro - É, a
mulher faz coadjuvância, aparece
sempre como satélite num universo masculino. Nós temos atrizes
muito boas, muito fortes, mas a temática feminina nunca interessou
muito. Mesmo em "Central do
Brasil" a Dora e o menino dividem
espaço como protagonistas.
Costumo dizer que o menino é
um anjo condutor. Ele é um determinado, não sofre mudança no
decorrer da história. A epopéia está em cima dela, que é a heroína
que sofre a transformação.
Folha - Em 84, havia um projeto
em que você seria Zuzu Angel num
filme que seria a estréia de Walter
Salles. Por que não aconteceu?
Fernanda - Aconteceu que o roteiro não se desenvolveu, por razões da própria história verdadeira
da Zuzu. Não pedi explicações,
nem sei bem o que houve. Tudo
bem, não aconteceu, numa boa.
Folha - Dora é o personagem feminino que Walter Salles lhe devia
em troca da Zuzu Angel?
Fernanda - É, ele foi muito generoso comigo. Nunca conversamos muito sobre isso, quando não
foi, não foi. E havia também um
outro roteiro, bastante complexo,
que inclui filmagens na Europa,
concertos lá fora. De repente seria
esse de "Central do Brasil", e essa
conversa tem dois anos.
Folha - Embora tenha estreado
em cinema em "A Falecida", você
não esteve presente em outros filmes do cinema novo, nem filmou
com Glauber Rocha. Por quê?
Fernanda - Conheci Glauber,
ele me convidou para participar de
"Terra em Transe", mas minha
companhia de teatro estava indo
para o Sul. Faria o papel que foi de
Glauce Rocha -que fez muito
bem. Faria também "São Bernardo", mas teria que ir a Alagoas, e
meus filhos eram muito pequenos.
Folha - Você gostaria de ter participado mais do cinema novo?
Fernanda - Não, eu tive uma
participação, que me coube com
muita alegria. Fiz poucos filmes,
mas filmes muito presentes. Sem
dúvida nenhuma, se você fizer
uma retrospectiva de cinema brasileiro, embora eu nunca tenha sido considerada uma atriz de cinema, não pode deixar de citar meu
nome dentro de certos elencos de
filmes que foram importantes.
Folha - Em teatro, você nunca
trabalhou com Antunes Filho.
Fernanda - Sou da geração de
Antunes, amo Antunes. Trabalhamos juntos na televisão.
Folha - Não é irônico que Fernanda Montenegro não tenha trabalhado em teatro com Antunes e em
cinema com Glauber?
Fernanda - Pois é, são essas coisas do destino. Mas, certamente,
por eu não ter trabalhado, outras
pessoas trabalharam e estão lá registradas. Não posso me queixar.
Folha - Seria compatível uma
parceria sua com Antunes, tido como um diretor ultra-exigente com
atores? Na segunda versão de "Vereda da Salvação", por exemplo,
ele extraía esforços quase sobre-humanos de Laura Cardoso.
Fernanda - Nós íamos brigar
muito, mas acho que seria possível. A gente ia sair no tapa, mas
acho que sim. Ele me convidou para aquele papel, mas também não
pude aceitar. Laura fez e foi aquele
extraordinário trabalho. Quando
as coisas se resolvem, acho que se
resolvem certo, tanto para quem
não fez como para quem fez.
Folha - Que esforço "Central do
Brasil" exigiu de você?
Fernanda - O primeiro desafio
era não ter uma face na multidão.
O desafio foi não atuar, embora
atuando, fazer com que minha cara não destoasse das outras, ou que
não atraísse atenção no meio daquelas pessoas. Quando você está
ali representando, não pode estar
desconforme. Não pode, porque
quem bate ali é gente de todo dia,
gente que não está codificada, o
próprio menino. É um menino
muito bem-educado, muito sensível, mas é um menino de rua. Você
vai ficar perto do garoto fazendo
tipo? Não pode.
Acho que consegui, por incrível
que pareça, ficar incógnita. As pessoas saem dos trens como uma
corrida de búfalos para o trabalho
e voltam para os trens como uma
corrida de búfalos para suas casas
lá no fundo do subúrbio, estressadas, cansadas -nem ficam olhando para o lado.
Folha - Na sua opinião "Central
do Brasil" tenta estabelecer um
diálogo com o cinema de Glauber?
Fernanda - Não temos muita
memória, ficamos um pouco distraídos, mas nosso cinema é uma
plêiade de gente com muita força
de expressão. É ótimo que você reconheça que pertence a uma família e, de repente, num certo olhar,
faz parte daquela tribo.
Folha - No caso de Walter Salles,
pode haver uma ruptura, já que
ele vem de uma cinematografia de
preocupações burguesas e agora
se aprofunda numa temática voltada às "entranhas do Brasil". Ele
tem know-how para isso?
Fernanda - Mas burgueses somos todos! Acho que ele é um artista e conhece o sentido da palavra
misericórdia -não da piedade,
que é outra palavra. É um universo
de que artistas da alta burguesia
deveriam se aproximar.
Folha - Qual é o olhar dele, ou o
seu, em relação à história que estão contando? É misericordioso ou
precisa de uma dose de cinismo?
Fernanda - A história dele é
uma, a minha é outra. Minhas origens são outras. Eu nasci no subúrbio -não nesse de hoje, era
um subúrbio diferente, mas era. A
realidade dele, que é outra, não
impede que quando a gente se encontre se dê uma série de conjuminações que culminem num produto como "Central do Brasil".
Folha - Dora rasga as cartas que
escreve para as pessoas por dinheiro, depois vende literalmente
o menino. Ela é mau-caráter? Pode
haver metáfora política nisso?
Fernanda - Ela é o que no Rio se
chama uma safa. Tem poder, um
dos seus prazeres é ajudar. Quando vê que há um blefe na razão de
uma carta, que não é de verdade,
ela não manda. Esse filme não é
engajado, doutrinário. É coração e
mente, um filme humanista.
Folha - A perspectiva da Dora, de
tirar vantagem das situações, não
é comparável à da classe política?
Implicitamente não se está dizendo que a culpa pela degradação de
valores é das bases, não das elites?
Fernanda - Todo o mundo imita a corte, a história ensina isso. Se
o rei gosta de faisão, a sociedade
quer gostar de faisão, mesmo sem
saber o que é. Então essa decomposição, essa desarrumação social
nasce lá em cima, vem em cadeia.
O país está em decomposição há
algum tempo, mas também há o
seguinte: nós temos uma raça extraordinária. Queira ou não está aí,
uma força louca. Nossa arte é fortíssima. Nossa cultura e nossa arte
são fortes, é isso que fez a gente ter
esses prêmios agora. Não nos deram esses prêmios porque são
bonzinhos ou quiseram fazer um
ato de caridade. Há algo forte aí.
Folha - Seu prêmio foi merecido?
Fernanda - Mereci. Não vou ser
cabotina, mereci. Foi um trabalho
dedicado, de qualidade -falo da
perseverança. Não era para ganhar, nunca deram dois primeiros
prêmios para um filme brasileiro.
Folha - Como foi possível reunir
você e Marília Pêra, ela como sua
coadjuvante? Há rivalidade?
Fernanda - É interessante, né? É
bonito, é gostoso. Ficou muito
bom. Espero muito retribuir, sendo coadjuvante dela um dia. Nós
somos bastante ligadas, a gente se
quer bem. Acho que temos um
certo mesmo canal, somos duas
cariocas da gema, suburbanas, temos um certo humor lá no fundo.
Folha - Glauber dizia que ator é
gado. O que você acha dessa frase?
Fernanda - Pode ser, pode ser...
Mas é gado de grande corte, de boa
carne. Se eu não estivesse no filme,
poderia ser tão bom quanto, talvez
até melhor. Não estou fazendo
charme, é claro que minha cara,
minha idade, minha maneira de
representar, meus tempos ficam
lá, são parte do filme.
No teatro, sim, tem que ter essa
discussão, porque ali nós, atores,
somos o melhor quinhão. O ator é
mais autônomo no teatro que no
cinema, que é arte de diretor.
Folha - Ainda há espaço para
ator de teatro por excelência?
Fernanda - Sempre há. Teatro é
um artesanato, você não pode juntar teatro com indústria, é outra
história. É uma herança antiquíssima, um processo ritual, comunicação humanamente direta. E sobreviverá sempre, mesmo que seja
nas catacumbas. Há milênio se diz
que o teatro vai morrer, que está
morto. Se alguém resolve matar o
teatro, é um problema dele que
matou o teatro. Se acha que está
morto, está morto. Mas pelo menos respeite o cara do lado ou ouça
o cara do lado dizer que está vivo.
Folha - Qual foi sua relação com
Nelson Rodrigues?
Fernanda - Muito grande. Ele
escreveu três peças para mim:
"Toda Nudez Será Castigada",
"Beijo no Asfalto" e "A Serpente".
Acabei só fazendo "Beijo no Asfalto". Aliás, vivem repetindo que as
atrizes recusaram fazer "Toda Nunez". Ninguém recusou papel porra nenhuma. Não foi nada disso,
engravidei da Nanda e Cleyde Yáconis fez maravilhosamente bem.
Agora Marília vai fazer. Qual era a
terceira peça, meu Deus? Uma palavra só... "Selvagem"...
Folha - Como era o Nelson dizer
que ia fazer um texto para você e
voltar com aqueles personagens?
Como você reagia?
Fernanda - Muito bem. Era
muito interessante. Dissemos:
"Agora, Nelson, faça uma comédia". Ele fez "Toda Nudez" (ri).
Uma comédia, imagina.
Folha - Você acha que um ator
precisa ter posição política?
Fernanda - Posição política todos nós temos, e de certa forma expressamos no trabalho.
Folha - O que pensa do Ratinho?
Fernanda - (Silêncio). Nossa
programação toda é tão previsível,
asséptica, que quando surge algo
mais inquieto, inesperado, real,
acontece isso, esse mundo cão. A
fase áurea da novela já acabou, está
tudo exaurido. A culpa não é Ratinho, é que o mundo "não cão" não
oferece alternativa.
Folha - Sobre os escândalos sexuais de Bill Clinton?
Fernanda - É o chamado pinto
de ouro, pinto de veludo. Todos os
presidentes do mundo devem estar com a maior inveja dele. Se o
presidente-mor lança a moda e sai
ileso, acho que talvez seja uma felicidade geral. Vai ser uma coisa alucinada, um bulevar maravilhoso.
Folha - A gravidez da Xuxa?
Fernanda - É marketing, um fenômeno a ser observado. Ela é
uma pop star, não tem mais onde
se esconder. É uma maneira de viver que adotou. Às vezes espanta,
mas, se ela está feliz, quem sou eu
para dizer que não devia ser assim?
Folha - É o Tchan?
Fernanda - Ah, pois é, É o
Tchan... Finalmente ficou configurado o gosto brasileiro, não é? Até
agora era uma coisa que se falava,
mas não estava tão configurada.
Agora é emblemático mesmo. A
bunda virou algo sólido, visível,
tangível. Estamos na fase da entronização oficial, é possível que daqui a pouco se canse da intensidade do lançamento do produto.
Folha - O Brasil de hoje tem um
grande projeto?
Fernanda - Não, não. É o grande desencanto da minha geração.
O Brasil é um país de eventos, não
é um país que tem um projeto. Sou
de uma geração que, do ponto de
vista cultural e educacional, só viu
um projeto ser feito. Foi o projeto
do Capanema, no governo Getúlio
Vargas. Teve uma frente de colaboradores da dimensão de Mário
de Andrade, Drummond, Villa-Lobos... Pode-se discutir se foi
bom ou mau, se foi dentro de uma
ditadura, mas esse foi um projeto.
A partir daí, são só eventos.
Folha - Então o Brasil de hoje está fingindo que tem um projeto?
Fernanda - Claro, todo o mundo acha que existe. Essa palavra ficou na moda, tudo é projeto. Mas
de projeto não tem nada. O atual
governo não tem um projeto, tem
certas atitudes de experimentação.
De repente se pode tirar tudo e experimentar outra coisa.
Folha - Você chegou a ser convidada para ser ministra da Cultura
por José Sarney. Tinha cabimento?
Fernanda - Eu digo que foi um
ato poético (ri), mas cabimento
não tinha. Não tinha cabimento.
Não sou do ramo, não tenho preparo. Não tenho nada, ponto.
Folha - Como você avalia a atuação do governo FHC na sua área?
Fernanda - Não nasceu nada
agora. Foi a partir da Lei Sarney,
mal ou bem, que as grandes empresas começaram a conceber em
suas agendas a possibilidade de receber artistas. Depois, a lei foi derrubada, execrada, zerada no governo Collor. Veio a Lei Rouanet,
que de tão fiscalizante era inoperante. Parecia comédia do absurdo. Aí foram abrindo a lei para ela
respirar e a gente poder ter algum
acesso a ela. E os resultados estão
aí, principalmente no cinema.
Folha - Quais são seus próximos
projetos?
Fernanda - Há o projeto de "A
Gaivota", dirigido por Daniela
Thomas. Devemos estrear em São
Paulo, talvez Curitiba, talvez Porto
Alegre, em julho. Somos malucos,
vamos estrear na Copa. Quanto a
cinema e TV, não há nada previsto.
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