São Paulo, quinta, 2 de abril de 1998

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CENTRAL DO BRASIL
"Filme é coração e mente", diz Fernanda

Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
Em "Central do Brasil", Fernanda Montenegro é Dora, mulher que vive de escrever cartas para analfabetos


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

"Ator é gado", polemizava o cineasta Glauber Rocha (1939-1981). "Pode ser, mas é gado de grande corte, de boa carne", responde Fernanda Montenegro, 68. Gado de boa carne, ela é responsável por metade da glória que o filme "Central do Brasil", de Walter Salles, recolheu do 48º Festival de Cinema de Berlim, em que ela levou o prêmio de melhor atriz.
Fernanda confirma a fama de "pé-quente" à dezena de filmes de que participou desde a estréia cinematográfica, em 65, no rodriguiano "A Falecida", de Leon Hirszman.
"Eles Não Usam Black-Tie", do mesmo Hirszman, inspirado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, levou o Leão de Ouro em Veneza 81. "A Hora da Estrela", de Suzana Amaral, de que ela participava, rendeu a Marcélia Cartaxo o título de melhor atriz em Berlim 85. Ela própria já havia levado um "melhor atriz" num festival italiano, por "Tudo Bem" (78), de Arnaldo Jabor.
Em entrevista à Folha, Fernanda discorre sobre "Central do Brasil", cinema e teatro nacionais, política cultural e explica por que nunca trabalhou com líderes intelectuais do porte de Glauber Rocha (no cinema) e Antunes Filho (no teatro).

Folha - Você costuma dizer que faltam personagens femininas fortes à dramaturgia. A Dora de "Central do Brasil" supre essa carência?
Fernanda Montenegro -
É, a mulher faz coadjuvância, aparece sempre como satélite num universo masculino. Nós temos atrizes muito boas, muito fortes, mas a temática feminina nunca interessou muito. Mesmo em "Central do Brasil" a Dora e o menino dividem espaço como protagonistas.
Costumo dizer que o menino é um anjo condutor. Ele é um determinado, não sofre mudança no decorrer da história. A epopéia está em cima dela, que é a heroína que sofre a transformação.
Folha - Em 84, havia um projeto em que você seria Zuzu Angel num filme que seria a estréia de Walter Salles. Por que não aconteceu?
Fernanda -
Aconteceu que o roteiro não se desenvolveu, por razões da própria história verdadeira da Zuzu. Não pedi explicações, nem sei bem o que houve. Tudo bem, não aconteceu, numa boa.
Folha - Dora é o personagem feminino que Walter Salles lhe devia em troca da Zuzu Angel?
Fernanda -
É, ele foi muito generoso comigo. Nunca conversamos muito sobre isso, quando não foi, não foi. E havia também um outro roteiro, bastante complexo, que inclui filmagens na Europa, concertos lá fora. De repente seria esse de "Central do Brasil", e essa conversa tem dois anos.
Folha - Embora tenha estreado em cinema em "A Falecida", você não esteve presente em outros filmes do cinema novo, nem filmou com Glauber Rocha. Por quê?
Fernanda -
Conheci Glauber, ele me convidou para participar de "Terra em Transe", mas minha companhia de teatro estava indo para o Sul. Faria o papel que foi de Glauce Rocha -que fez muito bem. Faria também "São Bernardo", mas teria que ir a Alagoas, e meus filhos eram muito pequenos.
Folha - Você gostaria de ter participado mais do cinema novo?
Fernanda -
Não, eu tive uma participação, que me coube com muita alegria. Fiz poucos filmes, mas filmes muito presentes. Sem dúvida nenhuma, se você fizer uma retrospectiva de cinema brasileiro, embora eu nunca tenha sido considerada uma atriz de cinema, não pode deixar de citar meu nome dentro de certos elencos de filmes que foram importantes.
Folha - Em teatro, você nunca trabalhou com Antunes Filho.
Fernanda -
Sou da geração de Antunes, amo Antunes. Trabalhamos juntos na televisão.
Folha - Não é irônico que Fernanda Montenegro não tenha trabalhado em teatro com Antunes e em cinema com Glauber?
Fernanda -
Pois é, são essas coisas do destino. Mas, certamente, por eu não ter trabalhado, outras pessoas trabalharam e estão lá registradas. Não posso me queixar.
Folha - Seria compatível uma parceria sua com Antunes, tido como um diretor ultra-exigente com atores? Na segunda versão de "Vereda da Salvação", por exemplo, ele extraía esforços quase sobre-humanos de Laura Cardoso.
Fernanda -
Nós íamos brigar muito, mas acho que seria possível. A gente ia sair no tapa, mas acho que sim. Ele me convidou para aquele papel, mas também não pude aceitar. Laura fez e foi aquele extraordinário trabalho. Quando as coisas se resolvem, acho que se resolvem certo, tanto para quem não fez como para quem fez.
Folha - Que esforço "Central do Brasil" exigiu de você?
Fernanda -
O primeiro desafio era não ter uma face na multidão. O desafio foi não atuar, embora atuando, fazer com que minha cara não destoasse das outras, ou que não atraísse atenção no meio daquelas pessoas. Quando você está ali representando, não pode estar desconforme. Não pode, porque quem bate ali é gente de todo dia, gente que não está codificada, o próprio menino. É um menino muito bem-educado, muito sensível, mas é um menino de rua. Você vai ficar perto do garoto fazendo tipo? Não pode.
Acho que consegui, por incrível que pareça, ficar incógnita. As pessoas saem dos trens como uma corrida de búfalos para o trabalho e voltam para os trens como uma corrida de búfalos para suas casas lá no fundo do subúrbio, estressadas, cansadas -nem ficam olhando para o lado.
Folha - Na sua opinião "Central do Brasil" tenta estabelecer um diálogo com o cinema de Glauber?
Fernanda -
Não temos muita memória, ficamos um pouco distraídos, mas nosso cinema é uma plêiade de gente com muita força de expressão. É ótimo que você reconheça que pertence a uma família e, de repente, num certo olhar, faz parte daquela tribo.
Folha - No caso de Walter Salles, pode haver uma ruptura, já que ele vem de uma cinematografia de preocupações burguesas e agora se aprofunda numa temática voltada às "entranhas do Brasil". Ele tem know-how para isso?
Fernanda -
Mas burgueses somos todos! Acho que ele é um artista e conhece o sentido da palavra misericórdia -não da piedade, que é outra palavra. É um universo de que artistas da alta burguesia deveriam se aproximar.
Folha - Qual é o olhar dele, ou o seu, em relação à história que estão contando? É misericordioso ou precisa de uma dose de cinismo?
Fernanda -
A história dele é uma, a minha é outra. Minhas origens são outras. Eu nasci no subúrbio -não nesse de hoje, era um subúrbio diferente, mas era. A realidade dele, que é outra, não impede que quando a gente se encontre se dê uma série de conjuminações que culminem num produto como "Central do Brasil".
Folha - Dora rasga as cartas que escreve para as pessoas por dinheiro, depois vende literalmente o menino. Ela é mau-caráter? Pode haver metáfora política nisso?
Fernanda -
Ela é o que no Rio se chama uma safa. Tem poder, um dos seus prazeres é ajudar. Quando vê que há um blefe na razão de uma carta, que não é de verdade, ela não manda. Esse filme não é engajado, doutrinário. É coração e mente, um filme humanista.
Folha - A perspectiva da Dora, de tirar vantagem das situações, não é comparável à da classe política? Implicitamente não se está dizendo que a culpa pela degradação de valores é das bases, não das elites?
Fernanda -
Todo o mundo imita a corte, a história ensina isso. Se o rei gosta de faisão, a sociedade quer gostar de faisão, mesmo sem saber o que é. Então essa decomposição, essa desarrumação social nasce lá em cima, vem em cadeia.
O país está em decomposição há algum tempo, mas também há o seguinte: nós temos uma raça extraordinária. Queira ou não está aí, uma força louca. Nossa arte é fortíssima. Nossa cultura e nossa arte são fortes, é isso que fez a gente ter esses prêmios agora. Não nos deram esses prêmios porque são bonzinhos ou quiseram fazer um ato de caridade. Há algo forte aí.
Folha - Seu prêmio foi merecido?
Fernanda -
Mereci. Não vou ser cabotina, mereci. Foi um trabalho dedicado, de qualidade -falo da perseverança. Não era para ganhar, nunca deram dois primeiros prêmios para um filme brasileiro.
Folha - Como foi possível reunir você e Marília Pêra, ela como sua coadjuvante? Há rivalidade?
Fernanda -
É interessante, né? É bonito, é gostoso. Ficou muito bom. Espero muito retribuir, sendo coadjuvante dela um dia. Nós somos bastante ligadas, a gente se quer bem. Acho que temos um certo mesmo canal, somos duas cariocas da gema, suburbanas, temos um certo humor lá no fundo.
Folha - Glauber dizia que ator é gado. O que você acha dessa frase?
Fernanda -
Pode ser, pode ser... Mas é gado de grande corte, de boa carne. Se eu não estivesse no filme, poderia ser tão bom quanto, talvez até melhor. Não estou fazendo charme, é claro que minha cara, minha idade, minha maneira de representar, meus tempos ficam lá, são parte do filme.
No teatro, sim, tem que ter essa discussão, porque ali nós, atores, somos o melhor quinhão. O ator é mais autônomo no teatro que no cinema, que é arte de diretor.
Folha - Ainda há espaço para ator de teatro por excelência?
Fernanda -
Sempre há. Teatro é um artesanato, você não pode juntar teatro com indústria, é outra história. É uma herança antiquíssima, um processo ritual, comunicação humanamente direta. E sobreviverá sempre, mesmo que seja nas catacumbas. Há milênio se diz que o teatro vai morrer, que está morto. Se alguém resolve matar o teatro, é um problema dele que matou o teatro. Se acha que está morto, está morto. Mas pelo menos respeite o cara do lado ou ouça o cara do lado dizer que está vivo.
Folha - Qual foi sua relação com Nelson Rodrigues?
Fernanda -
Muito grande. Ele escreveu três peças para mim: "Toda Nudez Será Castigada", "Beijo no Asfalto" e "A Serpente". Acabei só fazendo "Beijo no Asfalto". Aliás, vivem repetindo que as atrizes recusaram fazer "Toda Nunez". Ninguém recusou papel porra nenhuma. Não foi nada disso, engravidei da Nanda e Cleyde Yáconis fez maravilhosamente bem. Agora Marília vai fazer. Qual era a terceira peça, meu Deus? Uma palavra só... "Selvagem"...
Folha - Como era o Nelson dizer que ia fazer um texto para você e voltar com aqueles personagens? Como você reagia?
Fernanda -
Muito bem. Era muito interessante. Dissemos: "Agora, Nelson, faça uma comédia". Ele fez "Toda Nudez" (ri). Uma comédia, imagina.
Folha - Você acha que um ator precisa ter posição política?
Fernanda -
Posição política todos nós temos, e de certa forma expressamos no trabalho.
Folha - O que pensa do Ratinho?
Fernanda -
(Silêncio). Nossa programação toda é tão previsível, asséptica, que quando surge algo mais inquieto, inesperado, real, acontece isso, esse mundo cão. A fase áurea da novela já acabou, está tudo exaurido. A culpa não é Ratinho, é que o mundo "não cão" não oferece alternativa.
Folha - Sobre os escândalos sexuais de Bill Clinton?
Fernanda -
É o chamado pinto de ouro, pinto de veludo. Todos os presidentes do mundo devem estar com a maior inveja dele. Se o presidente-mor lança a moda e sai ileso, acho que talvez seja uma felicidade geral. Vai ser uma coisa alucinada, um bulevar maravilhoso.
Folha - A gravidez da Xuxa?
Fernanda -
É marketing, um fenômeno a ser observado. Ela é uma pop star, não tem mais onde se esconder. É uma maneira de viver que adotou. Às vezes espanta, mas, se ela está feliz, quem sou eu para dizer que não devia ser assim?
Folha - É o Tchan?
Fernanda -
Ah, pois é, É o Tchan... Finalmente ficou configurado o gosto brasileiro, não é? Até agora era uma coisa que se falava, mas não estava tão configurada. Agora é emblemático mesmo. A bunda virou algo sólido, visível, tangível. Estamos na fase da entronização oficial, é possível que daqui a pouco se canse da intensidade do lançamento do produto.
Folha - O Brasil de hoje tem um grande projeto?
Fernanda -
Não, não. É o grande desencanto da minha geração. O Brasil é um país de eventos, não é um país que tem um projeto. Sou de uma geração que, do ponto de vista cultural e educacional, só viu um projeto ser feito. Foi o projeto do Capanema, no governo Getúlio Vargas. Teve uma frente de colaboradores da dimensão de Mário de Andrade, Drummond, Villa-Lobos... Pode-se discutir se foi bom ou mau, se foi dentro de uma ditadura, mas esse foi um projeto. A partir daí, são só eventos.
Folha - Então o Brasil de hoje está fingindo que tem um projeto?
Fernanda -
Claro, todo o mundo acha que existe. Essa palavra ficou na moda, tudo é projeto. Mas de projeto não tem nada. O atual governo não tem um projeto, tem certas atitudes de experimentação. De repente se pode tirar tudo e experimentar outra coisa.
Folha - Você chegou a ser convidada para ser ministra da Cultura por José Sarney. Tinha cabimento?
Fernanda -
Eu digo que foi um ato poético (ri), mas cabimento não tinha. Não tinha cabimento. Não sou do ramo, não tenho preparo. Não tenho nada, ponto.
Folha - Como você avalia a atuação do governo FHC na sua área?
Fernanda -
Não nasceu nada agora. Foi a partir da Lei Sarney, mal ou bem, que as grandes empresas começaram a conceber em suas agendas a possibilidade de receber artistas. Depois, a lei foi derrubada, execrada, zerada no governo Collor. Veio a Lei Rouanet, que de tão fiscalizante era inoperante. Parecia comédia do absurdo. Aí foram abrindo a lei para ela respirar e a gente poder ter algum acesso a ela. E os resultados estão aí, principalmente no cinema.
Folha - Quais são seus próximos projetos?
Fernanda -
Há o projeto de "A Gaivota", dirigido por Daniela Thomas. Devemos estrear em São Paulo, talvez Curitiba, talvez Porto Alegre, em julho. Somos malucos, vamos estrear na Copa. Quanto a cinema e TV, não há nada previsto.



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