São Paulo, sábado, 02 de junho de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

A "glasnost" da poesia soviética

O trabalho se compara, em importância, ao resgate que os musicólogos vem fazendo de compositores soviéticos

QUANDO MIKHAIL Gorbachev deu início ao processo de redemocratização da União Soviética, nos anos 80, entrou em circulação na imprensa internacional o termo "glasnost", que significa "transparência".
Passados mais de 15 anos do fim do império comunista, porém, a produção artística do período que vai da Revolução de 1917 às variantes de totalitarismo capitaneadas por Stálin, Kruschev e Brejnev ainda é um continente opaco.
Daí a importância da publicação de "Poesia Soviética", antologia organizada e traduzida por Lauro Machado Coelho, com uma generosa seleção de poemas de 24 escritores que, em sua imensa maioria, sofreram perseguição política e censura estatal.
O trabalho se compara, em importância, ao resgate que os musicólogos vêm fazendo de compositores soviéticos como Alfred Schnittke e Galina Ustvolskaya. E o paralelo é pertinente, pois Machado Coelho também é conhecido como crítico musical, autor de uma biografia de Dmitri Shostakóvitch e da coleção "História da Ópera" (editora Perspectiva), que inclui o volume "A Ópera na Rússia".
Em "Poesia Soviética", ele enfrenta duplo desafio. De um lado, identificar uma produção literária que se fazia de modo quase clandestino e não teve recepção crítica ampla. De outro, a dificuldade de recriar em português a poesia escrita no idioma russo -tarefa cuja avaliação caberá aos especialistas.
Graças a tradutores como Boris Schnaiderman e Aurora Bernardini, a poesia russa do século 20 teve boa difusão no Brasil, mas está associada a autores como Vladimir Maiakóvski, Marina Tsvetáieva, Ossip Mandelstam e Anna Akhmátova (de quem Machado Coelho publicou uma coletânea de poemas).
Tais poetas pertencem a um momento de transição entre o universo da Rússia czarista e a era soviética. No caso da presente antologia, ao contrário, praticamente todos nasceram às vésperas ou logo após a revolução comunista.
Nomes como Nikolái Zabolótski (1903-1958) e Novella Matvêieva (1934), por exemplo, surgiram em décadas diferentes -mas à sombra do "realismo socialista", do catecismo estético que Machado Coelho analisa no abrangente ensaio introdutório do livro, reconstituindo a história da União Soviética.
Num volume de proporção monumental, há muita poesia narrativa, um lirismo ingênuo cuja relevância se deve sobretudo ao martírio dos autores. Alguns capítulos, contudo, constituem pequenos livros dentro do livro -e adquirem essa dimensão por conta do olhar do antologista, que soube dar o devido espaço a poetas notáveis.
O "nonsense" dos poemas em prosa de Daníil Kharms ("versão russa dos dadaístas franceses"), a ironia erudita de Andrêi Vozniessiênski e Iósif Bródski (prêmio Nobel de 1987), a mística apocalíptica de Arsênyi Tarkóvski (pai do cineasta Andrêi Tarkóvski) e o lirismo súplice de Natália Gorbaniévskaia são pontos luminosos na longa noite soviética.


POESIA SOVIÉTICA
Autor:
Lauro Machado Coelho
Editora: Algol
Quanto: R$ 68 (656 págs.)
Avaliação: ótimo


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