São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Final abrupto cai bem ao último livro de Juan José Saer

Autor entra para a galeria dos que deixaram obras importantes não concluídas

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Com a chuva chegou o outono e, com o outono, o tempo do vinho." Assim, incompleto, começa e termina o último capítulo do último livro de Juan José Saer, "O Grande", já que o autor não conseguiu concluí-lo antes de morrer, em 2005 (iniciara o projeto em 1999).
A frase é por várias razões o final ideal para o romance, como aliás já sugere uma de suas epígrafes: "O que era firme resvalou, e apenas/ o que escapava permanece e dura" (Quevedo).
Em primeiro lugar, porque o tempo e a incompletude, as repetições distorcidas (de personagens, de situações), os silêncios e as ausências são algumas das marcas fortes presentes em uma obra construída com rigor ao longo de décadas, na qual se destacam criações como "Ninguém Nada Nunca" ou "O Enteado" (publicadas no Brasil também pela Companhia das Letras).

CORTE ARBITRÁRIO
A ideia de algo que não pode acabar, além disso, está presente na própria arquitetura do texto, com sua divisão em sete capítulos, cada um para um dia da semana, começando em uma terça-feira, quando Gutiérrez, que estivera afastado da Argentina por 30 anos, começa a convidar amigos para um churrasco, que vai acontecer no domingo.
A segunda-feira, o capítulo inconcluso, seria curto, segundo o editor de Saer (teria cerca de 20 páginas e terminaria com a frase: "Moro vende").
O fato é que, como lembrou o escritor argentino Carlos Gamerro, a escolha da semana como unidade de tempo da narrativa não é casual e remete a "um corte arbitrário no fluxo temporal", é algo que começa em um momento qualquer e termina em outro momento qualquer.
O final abrupto faz ainda com que Saer se torne membro de uma galeria especial de escritores que deixaram obras importantes não terminadas, galeria em que as conexões nacionalistas que ele tanto atacou não fazem nenhum sentido.
Ou seja, que ele passe a ser lembrado como membro de uma nobre linhagem que inclui Kafka, por exemplo, me parece uma justa homenagem do acaso.
Da mesma forma, é justo que, nesta resenha, ele tenha as últimas palavras, retiradas de "O Grande", elas também (um pouquinho só) ao acaso:
"Inclinou-se e deu um beijo em seu rosto. Nula estava emocionado e começou a balbuciar alguma coisa, mas ela se virou, acendeu a luz da entrada e fechou a porta. Depois de alguns segundos, ouviu-se de novo o barulhinho metálico da fechadura, que havia uma semana se repetia em sua cabeça e que continuaria se repetindo por muitos anos, familiar, em sua memória, transferido de sua futilidade de puro acontecer para o céu metonímico onde os fatos dissecados e transpostos para uma nova ordenação restituem e referem, provocando alternadamente angústia ou consolo, a experiência imperfeita e fugidia."


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP

O GRANDE

AUTOR Juan José Saer
TRADUÇÃO Heloisa Jahn
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 57 (410 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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