São Paulo, quinta-feira, 02 de novembro de 2006

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comentário

Bom Retiro tinha mundos distintos

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

No Bom Retiro de 1970 havia o Renascença e o Scholem. O Renascença era a escola mais conservadora, dos filhos de imigrantes. Era o colégioa de centro-direita. Já o Scholem era a escola dos brasileiros, assimilados e contrários à religião.
Num se ensinava hebraico, a língua sagrada. No outro, iídiche, língua laica. O professor de Educação Moral e Cívica do Renascença era o Clóvis, patriota convicto. No Scholem, provavelmente nem havia essa disciplina.
Eu era do Renascença e, como vários personagens do filme "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", de Cao Hamburger, não fazia idéia do que eram direita e esquerda.
Éramos filhos de imigrantes, para quem a taxa de juros era mais importante do que a política. Diferente dos alunos do Scholem, que sabiam de coisas muito misteriosas. Não por coincidência, no filme a escola é utilizada como locação para a célula de esquerda.
E havia também o lado B do Bom Retiro, formado principalmente pelos italianos. Eles moravam numa parte menos nobre do bairro. Que, aliás, nunca foi nobre, porque a parte verdadeiramente rica do Bom Retiro ficava mesmo em Higienópolis.
São esses os três mundos do filme. O judaísmo, a ditadura e o futebol. Como torcer pela Copa em iídiche? Como lidar com a ditadura quando se acabou de escapar do nazismo? Com uma seleção como aquela, como um militante de esquerda poderia torcer contra o Brasil?
E, mesmo assim, no filme, a luta contra a ditadura, o judaísmo e o futebol possuem conteúdos comuns, principalmente para um futuro goleiro, como é o protagonista Mauro, ou Moishele, numa comparação hilária com Moisés, que, como o personagem, também foi encontrado por estranhos. Só que no filme a princesa é um vizinho do avô recém-falecido, e a beira do Nilo é um prédio do Bom Retiro.
É o ponto de vista da redenção, de uma reserva possível de resistência, que torna esses três mundos familiares, mesmo que tão distintos.


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