São Paulo, quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005

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GASTRONOMIA

Crítico dos EUA põe graça na obstinação pela comida

DO COLUNISTA DA FOLHA

À parte o colossal abismo de graça e talento que nos separa, há outra diferença gritante entre meu colega americano Jeffrey Steingarten, crítico gastronômico da revista "Vogue", e eu. Quando quero falar de um tema como o toro (a barriga do atum gordo, de onde sai o mais delicioso e caro sashimi), corro até o Tanaka, um restaurante pouco conhecido em Moema (onde nunca há espera), experimento o ótimo toro preparado pelo sushiman, arranco-lhe algumas palavras e depois telefono a Jun Sakamoto para ouvir histórias de incríveis atuns que ele encontrou em Nova York ou Tóquio. Tudo em tempo de fazer a reportagem ainda naquele dia, em ritmo de jornal diário.
Movido pela mesma curiosidade, o que faz o persistente e engraçado Steingarten? Como se verá em seu novo livro lançado no Brasil, "Deve Ter Sido Alguma Coisa que Eu Comi", ele voará até Ensenada, no México, chafurdará numa fazenda de criação de bluefin (o marlim-azul, variedade de atum que produz o mais precioso toro), verá o abate de peixes que irão para o mercado de Tsukiji, em Tóquio, para alcançar preços entre US$ 30 e US$ 80 (entre R$ 78 e R$ 209) o quilo (mas já chegaram a US$ 240) e, não satisfeito, partirá para Virgínia para enfrentar o mar num barco onde, com suas mãos (provavelmente calejadas de tanto erguer garfos), firmará o anzol que vai fisgar um marlim de 80 kg (será que jornalista mente tanto quanto pescador ao menos quando pesca?).
Esta obstinação de Steingarten por mergulhar a fundo em seus temas gastronômicos (bancada, como ele repete sempre, pelos preocupados editores da revista) é um dos grandes atrativos do livro. Para falar de sal "chique", ele voa para um congresso de cientistas gourmets na Sicília, depois de mandar amostras de produtos para um laboratório americano e outras para um instituto inglês que reunirá 20 degustadores.
Se o assunto é carne, liga para 75 churrascarias para saber a matéria-prima que utilizam, embarca num vôo para jantar na Flórida, compra uma dezena de grelhas para testar, além de transformar sua geladeira em uma câmara de maturação a seco digna de um cientista louco. Tudo isso enquanto inferniza por telefone autoridades governamentais, associações de produtores, institutos científicos, gourmets...
Com todo esse circo, ele vai destruindo preconceitos fomentados por quem não ama a gastronomia, provando entre outras coisas que "comer montes de gordura não-animal não causa problemas (sendo melhor, provavelmente, que uma dieta rica em carboidratos); que consumir pomares e hortas inteiros não diminui o risco de câncer do cólon; que beber álcool previne ataques cardíacos; que ninguém é tão intolerante à lactose que não possa tomar um copinho de leite; que o chocolate pode até mesmo nos proteger".
Mas o valor literário de Steingarten não está somente na sua obstinada pesquisa. Ela poderia resultar em relatórios fundamentados mas insuportavelmente chatos. Seu valor adicional está na graça com que trata dos assuntos, bombardeando a paranóia puritana dos norte-americanos, e na paixão que ele transmite pelo tema: impossível ler sua pesquisa técnica sobre a carne sem depois correr ao açougue; ou suas aventuras com o toro sem voar em seguida ao melhor sushibar disponível. (JOSIMAR MELO)


Deve Ter Sido Alguma Coisa que Eu Comi
    
Autor: Jeffrey Steingarten
Tradução: Luiz Henrique Horta
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (512 págs.)


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