|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
Crítico dos EUA põe graça na obstinação pela comida
DO COLUNISTA DA FOLHA
À parte o colossal abismo de
graça e talento que nos separa, há outra diferença gritante entre meu colega americano Jeffrey
Steingarten, crítico gastronômico
da revista "Vogue", e eu. Quando
quero falar de um tema como o
toro (a barriga do atum gordo, de
onde sai o mais delicioso e caro
sashimi), corro até o Tanaka, um
restaurante pouco conhecido em
Moema (onde nunca há espera),
experimento o ótimo toro preparado pelo sushiman, arranco-lhe
algumas palavras e depois telefono a Jun Sakamoto para ouvir histórias de incríveis atuns que ele
encontrou em Nova York ou Tóquio. Tudo em tempo de fazer a
reportagem ainda naquele dia,
em ritmo de jornal diário.
Movido pela mesma curiosidade, o que faz o persistente e engraçado Steingarten? Como se verá
em seu novo livro lançado no Brasil, "Deve Ter Sido Alguma Coisa
que Eu Comi", ele voará até Ensenada, no México, chafurdará numa fazenda de criação de bluefin
(o marlim-azul, variedade de
atum que produz o mais precioso
toro), verá o abate de peixes que
irão para o mercado de Tsukiji,
em Tóquio, para alcançar preços
entre US$ 30 e US$ 80 (entre R$ 78
e R$ 209) o quilo (mas já chegaram a US$ 240) e, não satisfeito,
partirá para Virgínia para enfrentar o mar num barco onde, com
suas mãos (provavelmente calejadas de tanto erguer garfos), firmará o anzol que vai fisgar um marlim de 80 kg (será que jornalista
mente tanto quanto pescador ao
menos quando pesca?).
Esta obstinação de Steingarten
por mergulhar a fundo em seus
temas gastronômicos (bancada,
como ele repete sempre, pelos
preocupados editores da revista)
é um dos grandes atrativos do livro. Para falar de sal "chique", ele
voa para um congresso de cientistas gourmets na Sicília, depois de
mandar amostras de produtos
para um laboratório americano e
outras para um instituto inglês
que reunirá 20 degustadores.
Se o assunto é carne, liga para 75
churrascarias para saber a matéria-prima que utilizam, embarca
num vôo para jantar na Flórida,
compra uma dezena de grelhas
para testar, além de transformar
sua geladeira em uma câmara de
maturação a seco digna de um
cientista louco. Tudo isso enquanto inferniza por telefone autoridades governamentais, associações de produtores, institutos
científicos, gourmets...
Com todo esse circo, ele vai destruindo preconceitos fomentados
por quem não ama a gastronomia, provando entre outras coisas
que "comer montes de gordura
não-animal não causa problemas
(sendo melhor, provavelmente,
que uma dieta rica em carboidratos); que consumir pomares e
hortas inteiros não diminui o risco de câncer do cólon; que beber
álcool previne ataques cardíacos;
que ninguém é tão intolerante à
lactose que não possa tomar um
copinho de leite; que o chocolate
pode até mesmo nos proteger".
Mas o valor literário de Steingarten não está somente na sua
obstinada pesquisa. Ela poderia
resultar em relatórios fundamentados mas insuportavelmente
chatos. Seu valor adicional está na
graça com que trata dos assuntos,
bombardeando a paranóia puritana dos norte-americanos, e na
paixão que ele transmite pelo tema: impossível ler sua pesquisa
técnica sobre a carne sem depois
correr ao açougue; ou suas aventuras com o toro sem voar em seguida ao melhor sushibar disponível.
(JOSIMAR MELO)
Deve Ter Sido Alguma Coisa que Eu Comi
Autor: Jeffrey Steingarten
Tradução: Luiz Henrique Horta
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 58 (512 págs.)
Texto Anterior: Erudito: Cohen executa leitura amadurecida e sóbria de sonata de Liszt Próximo Texto: Mundo Gourmet: Tri Boo une Ásia e Ocidente em ambiente convidativo Índice
|