São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2000


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CALIBRE 35MM
Para fazer filme sobre o "Maníaco do Parque", diretor Alex Prado dormiu um mês na cama do criminoso
Cinema-crime vai além das telas

IVAN FINOTTI
da Reportagem Local

Até que ponto vai a relação entre um cineasta e o criminoso objeto de sua filmagem?
Nesta semana, o documentarista João Moreira Salles revelou que, após entrevistar Marcinho VP para o vídeo "Notícias de uma Guerra Particular", pagou para que o traficante largasse o crime e escrevesse um livro.
É uma intimidade até então inédita nos bastidores do cinema policial brasileiro, seja ele de ficção ou documental. Uma intimidade que parece estar aumentando de 40 anos para cá.
Em 1959, o diretor Roberto Farias filmou a história do temido assaltante Promessinha. Baseou-se em um roteiro feito a partir de notícias veiculadas em jornais e nem sequer cogitou entrevistar o criminoso.
Trinta e oito anos depois, seu sobrinho Régis Faria assinou um termo de responsabilidade para entrar em um presídio goiano sem proteção policial e filmar Leonardo Pareja. Acabou com uma faca no pescoço.

Anos dourados
Com menos de 20 anos, Antonio "Promessinha" Rossini já era famoso por ter realizado mais de 40 assaltos. Tão famoso que Roberto Farias foi chamado para fazer um filme sobre o assunto. O nome seria "Cidade Ameaçada".
"A história já estava escrita, baseada em notícias. O filme, aliás, criticava a polícia e a imprensa, que fabricavam bandidos para vender jornal", diz o diretor.
O contato de Farias com Promessinha foi zero. "Havia a preocupação de dizer que era baseado em fatos reais, mas era ficção também. Tanto que, no filme, Promessinha virou Passarinho", lembra Farias, que nunca mais ouviu falar no criminoso.
Três anos depois, Farias se baseou em outro crime carioca para fazer "O Assalto ao Trem Pagador". "Queria algo com mais responsabilidade, mais agudeza na análise das coisas", diz Farias. "Então procurei o delegado que estava caçando os bandidos e participei das buscas. Cheguei a ver alguns deles sendo presos, mas não tive contato com eles."

Anos rebeldes
Outro clássico do cinema nacional baseado em crimes reais é "O Bandido da Luz Vermelha", que Rogério Sganzerla lançou em 68. João Acácio Pereira da Costa, o bandido, foi condenado por 88 crimes, incluindo 77 roubos, 4 assassinatos e diversos estupros.
"Escrevi meu "Bandido" a partir de minha imaginação, quando estava no exterior. Quando voltei, apareceu esse cara, que tinha apavorado São Paulo. Isso propiciou a produção do filme; apareceram sócios. Eu queria entrevistá-lo, mas a polícia nunca deixou", conta Sganzerla,que acabou pesquisando os crimes nos jornais.
O diretor conheceu João Acácio apenas em meados dos anos 90. "Foi uma iniciativa da imprensa. Me levaram lá no presídio. Foi legal. Disse que eu tinha feito o filme; ele me abraçou, elogiou. Tiramos fotos. Era solitário, mas achei que era respeitado na cadeia."
Quando João Acácio foi libertado, Sganzerla não conseguiu encontrá-lo entre sua libertação, em agosto de 97, e sua morte, quatro meses depois. "Pretendo fazer outro filme sobre o assunto. Já tenho 40 minutos prontos. Seria o personagem após cumprir a cadeia. Mostrar o que piorou no país, estabelecer essas relações."
Nove anos depois de Sganzerla, o cineasta Hector Babenco dirigiria "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" (77), sobre o assaltante de bancos carioca que denunciou a corrupção policial.
Babenco não conheceu Lúcio Flávio Vilar Lírio, que havia morrido assassinado na cadeia (queima de arquivo, disseram) no início de 75. Mas o Esquadrão da Morte continuava vivo. "Minha casa foi metralhada, fui ameaçado, me mudei. Mas não quero falar desse assunto. Prefiro não alimentar esse folclore entre arte e criminalidade", afirma.
Babenco também preferiu não falar no caso de "Pixote, A Lei do Mais Fraco" (80), um dos mais dramáticos da relação de cineastas com marginais. "O que representou a morte do menino...", começa Babenco, sem terminar.
O menino a que se refere é Fernando Ramos da Silva, garoto pobre de Diadema que protagonizou o drama sobre crianças de rua "Pixote". Alçado a estrela, Fernando passou anos tentando se tornar ator, mas não conseguiu outros papéis de destaque.
Em 87, acusado por policiais militares de roubar um carro, foi morto com seis tiros nas costas, aos 18 anos.

Anos incríveis
Em agosto de 96, o cineasta Régis Faria colocou sua vida em risco para filmar o documentário "Leonardo Pareja". O assaltante e sequestrador estava preso em uma penitenciária de Goiás.
"Quisemos entrar sem a polícia e assinamos um termo de responsabilidade sobre nossas vidas. Eu e uma equipe de mais quatro pessoas. Primeiro, entrevistei ele para fazer um roteiro. Depois, ficamos uns sete dias gravando as entrevistas", conta Faria.
Segundo o documentarista, Pareja era muito vaidoso: "Denunciava um monte de coisas, mas não por real preocupação, porque sabia que a opinião pública ficaria do seu lado."
No último dia de filmagem, o diretor levou seu irmão, o ator Marcelo Faria. "De repente, no meio da entrevista, eles começaram uma rebelião. Um monte de presos com facas na mão; puseram no nosso pescoço e nos colocaram nas celas. Então disseram que era brincadeira, só para a gente sentir a adrenalina, ver como é que é sabe?"
Nos quatro meses seguintes, até morrer assassinado pelo seu melhor amigo na cadeia, Pareja continuou a telefonar aos irmãos Faria. "Ligava para o nosso celular e queria saber quando o programa iria ao ar", diz o diretor.
O documentário, com algumas cenas dramatizadas (nas quais Pareja é interpretado por Maurício Branco), foi ao ar, pelo Canal Brasil, um ano após a morte do criminoso.
"Apesar da brincadeira de muito mau gosto, eu torcia para o Pareja se regenerar, para as coisas mudarem na vida dele. Fiquei triste quando ele morreu. Até o ano passado, sonhava com ele."
Outro cineasta que teve pesadelos recentes com seu retratado foi Alex Prado. Pudera: finalizando um filme sobre Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, o cineasta dormiu por 30 noites na própria cama do criminoso.
"Fiquei amigo da família", conta Prado, que entrevistou Pereira três vezes. "Para pesquisar a vida dele, passei a morar na casa deles, em Guaraci (interior de São Paulo). Pior foi para minha mulher, que ficou apavorada por dormir lá."
Não é a primeira obra de Prado baseada em crimes reais. Especializado em fazer filmes baratos para exibir na periferia, Prado convenceu o ex-policial e justiceiro Clidenor Anselmo Brilhante, o Esquerdinha, a interpretar a si mesmo na fita "Esquerdinha, Braço Forte da Lei".
"Ele dizia que tinha matado, com seu grupo, uns 600 criminosos na região do ABC paulista", conta Prado. "Ficamos amigos. Passeávamos e jantávamos juntos." O "astro" foi assassinado junto com o lançamento do filme, em janeiro de 92.


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