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LIVRO/LANÇAMENTO
"MEMORIAL DO FIM"
Romance do paraense Haroldo Maranhão faz confronto entre personagens históricos e ficcionais
Autor investiga morte e paixões de Machado
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
No "chalet" número 18 da rua
do Cosme Velho, à margem
do rio das Caboclas, na penumbra
condizente com a morte que se
avizinha, entre visitantes circunspetos, frascos de xarope e água de
Vichy, agoniza longamente nosso
maior escritor. Como reflete um
dos presentes: "Mas este homem!
Apodrece. Fede. E insiste!".
Cuidemos de estabelecer logo:
"Memorial do Fim" é livro boníssimo, embora difícil de ser acompanhado por quem desconhece
os pormenores da vida e obra de
Machado de Assis.
O romance não acompanha
apenas as circunstâncias que cercam a morte do escritor. Enredada a elas, temos uma intriga amorosa na forma de mistério. Teria
Machado, após a morte da mulher Carolina, nutrido amores por
uma jovem leitora?
A narrativa sugere que sim. E
mais: o viúvo teria pensado em
casar-se com a moça, ainda que
"in extremis", a fim de que ela fosse beneficiada pela renda de um
montepio. Haroldo Maranhão
baseou sua hipótese numa carta
de uma certa Hylda. Segundo ele,
a epístola faz parte do arquivo da
Academia Brasileira.
Mas o autor mistura as peças do
tabuleiro. Hylda é identificada
com Leonora (paixão do poeta
Torquato Tasso) e também com
Marcela Valongo, que surge no
início do romance e também pode ser Virgínia, de "Memórias
Póstumas de Brás Cubas".
O próprio Machado ora aparece
como ele mesmo, ora como o
Conselheiro Ayres, protagonista
de seu último romance. Personagens da ficção do bruxo do Cosme
Velho unem-se a criações de Maranhão e personalidades da história brasileira, o crítico José Veríssimo e o médico Miguel Couto.
O romance passeia por essas
vias de mão dupla: caracteres históricos X figuras ficcionais, simulacro X realidade, personagens e
situações que se multiplicam. Por
trás, reside um grande nó relativo
ao status do moribundo.
"O nosso morto era excelso,
amado, quisto, benigno", declara
o narrador. Vulto das letras, merece visita de figurões do governo.
Bem diferente da "morte pequena" que sucede antes, na casa vizinha, para a qual "acorreram ralas
pessoas, sem emoção de nota".
Não há como negar. Machado
faz parte do "establishment" que
ele próprio critica. Podemos dizer
que há um cisma entre o Machado que denuncia nas entrelinhas o
destempero nacional e o Machadinho das jovens leitoras, e dos
políticos, e das solenidades.
Maranhão acentua essa dicotomia histórica ao aproximar o escritor de suas personagens (de
Ayres, sobretudo), representantes
da oligarquia nacional. Propositadamente ou não, volta contra o
escritor a ironia antes destinada
aos personagens.
A situação repete-se no terreno
estilístico, onde o autor parodia,
num admirável "tour de force", o
estilo de Machado. O pastiche, como ele define, gera incômodo. Se
o romance é redigido nos dias de
hoje, por que a linguagem calcada
na do "mestre"?
Ao promover uma simbiose no
campo da expressão, Maranhão
faz mais que confundir cópia com
original. Faz Machado apear do
pedestal de juiz equânime da sociedade, sapecando-lhe pontos de
interrogação. E torna equívoca a
questão da autoridade, já posta
em xeque pelo retrato bifurcado
do patriarca moribundo.
Essa ambigüidade encerra-se,
não por acaso, na zona fronteiriça
e difusa da morte, definida como
"uma letra à vista de liquidez incerta, porque não se conhece a
tradição na praça do endossante".
Mais machadiano, impossível.
Memorial do Fim: A Morte de Machado de Assis
Autor: Haroldo Maranhão
Editora: Planeta
Quanto: R$ 33,50 (200 págs.)
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