São Paulo, sábado, 03 de abril de 2004

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LIVRO/LANÇAMENTO

"ORYX E CRAKE"

Em romance de ficção especulativa, autora canadense tece discurso contra os excessos da ciência

Margaret Atwood critica por meio de parábolas

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Há dois tipos básicos de ficção científica: as que servem de parábolas ou fábulas e as que, ao modo das histórias de horror, procuram dar uma forma ao desconhecido. O primeiro tipo faz, em geral, uma advertência alegórica, moral ou política em relação ao presente e a um futuro a ser evitado ("1984", "Admirável Mundo Novo" etc.). O segundo tipo usa o futuro como metáfora do fantástico, do que está para além da compreensão humana. As melhores narrativas do gênero costumam combinar as duas coisas.
"Oryx e Crake" (2003), de Margaret Atwood, é um exemplo exclusivo do primeiro tipo. A escritora canadense está menos preocupada em dar uma imagem ao desconhecido do que em fazer uma ilustração e um prognóstico do que já conhecemos ou prevemos. Como toda fábula, tem uma moral: "Se continuarmos desse jeito, acabaremos assim". No momento em que se descobre que houve água em Marte, o romance de Atwood surge como um prognóstico acautelador. Desde "O Conto da Aia" ("The Handmaid's Tale"), de 1985, a autora prefere definir suas ficções científicas como "ficções especulativas".
O mais lúdico para um escritor desse gênero é a possibilidade de imaginar o apocalipse e inventar um universo todo novo, com regras e lógica próprias. Em "Oryx e Crake", trata-se de um mundo pós-industrial de sucatas e monstros resultantes de um desvario da manipulação genética e de cientistas a serviço de corporações. Não é uma fábula contra a ciência, mas contra o uso irresponsável que o capitalismo faz dela.
A narrativa acompanha aquele que, em princípio, parece ser o único sobrevivente da raça humana depois de uma catástrofe planetária. Está com o corpo coberto de picadas de mosquitos e se autodenomina "homem das neves" para um bando de estranhos seres que o escutam, dóceis, indefesos e burros, e que lembram humanos sem os sentimentos humanos e tudo o que deles decorre para o bem ou para o mal. Vivem nus e inconscientes, no inferno, como Adão e Eva no Paraíso. A esses seres inocentes o "homem das neves" fala de Oryx e Crake (a mulher que ele amava e seu melhor amigo) como se fossem deuses criadores, despertando-lhes a idéia de mitologia e religião.
O romance de Atwood alterna o presente do "homem das neves", sozinho na aurora de uma nova civilização, e o seu passado em algum momento do século 21, num futuro não muito distante dos dias de hoje. Os dois tempos da narrativa convergem para a catástrofe que teria destruído o velho mundo e inaugurado o novo de uma tacada só. É o que mantém a atenção e o suspense, pois, embora saiba o que havia antes e o que veio depois, é justamente nesse ponto de passagem que está todo o núcleo dramático do romance: não apenas a origem do inferno mas o fim da relação entre o "homem das neves", Oryx e Crake.
O discurso de Atwood representa uma preocupação que está no ar hoje (entre ecologistas e ambientalistas sobretudo). É um discurso com mensagens um tanto óbvias, embora não menos pertinentes, que fala de um desdobramento possível: as experiências dos homens com a natureza podem sair do controle e acabar destruindo os próprios homens e o mundo em que vivem.
É o ponto mais fraco, como se o texto não passasse de um meio para a transmissão das idéias da autora. Apesar disso e do recurso à facilidade da teoria conspiratória, que dá ao romance um tom, se não de fórmula, pelo menos de vício, "Oryx e Crake" é um livro que se lê com o maior prazer.


Oryx e Crake
   
Autora: Margaret Atwood
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Quanto: preço a definir (344 págs.)



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