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LIVRO/LANÇAMENTO
"ORYX E CRAKE"
Em romance de ficção especulativa, autora canadense tece discurso contra os excessos da ciência
Margaret Atwood critica por meio de parábolas
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Há dois tipos básicos de ficção científica: as que servem
de parábolas ou fábulas e as que,
ao modo das histórias de horror,
procuram dar uma forma ao desconhecido. O primeiro tipo faz,
em geral, uma advertência alegórica, moral ou política em relação
ao presente e a um futuro a ser
evitado ("1984", "Admirável
Mundo Novo" etc.). O segundo tipo usa o futuro como metáfora do
fantástico, do que está para além
da compreensão humana. As melhores narrativas do gênero costumam combinar as duas coisas.
"Oryx e Crake" (2003), de Margaret Atwood, é um exemplo exclusivo do primeiro tipo. A escritora canadense está menos preocupada em dar uma imagem ao
desconhecido do que em fazer
uma ilustração e um prognóstico
do que já conhecemos ou prevemos. Como toda fábula, tem uma
moral: "Se continuarmos desse
jeito, acabaremos assim". No momento em que se descobre que
houve água em Marte, o romance
de Atwood surge como um prognóstico acautelador. Desde "O
Conto da Aia" ("The Handmaid's
Tale"), de 1985, a autora prefere
definir suas ficções científicas como "ficções especulativas".
O mais lúdico para um escritor
desse gênero é a possibilidade de
imaginar o apocalipse e inventar
um universo todo novo, com regras e lógica próprias. Em "Oryx e
Crake", trata-se de um mundo
pós-industrial de sucatas e monstros resultantes de um desvario da
manipulação genética e de cientistas a serviço de corporações.
Não é uma fábula contra a ciência,
mas contra o uso irresponsável
que o capitalismo faz dela.
A narrativa acompanha aquele
que, em princípio, parece ser o
único sobrevivente da raça humana depois de uma catástrofe planetária. Está com o corpo coberto
de picadas de mosquitos e se autodenomina "homem das neves"
para um bando de estranhos seres
que o escutam, dóceis, indefesos e
burros, e que lembram humanos
sem os sentimentos humanos e
tudo o que deles decorre para o
bem ou para o mal. Vivem nus e
inconscientes, no inferno, como
Adão e Eva no Paraíso. A esses seres inocentes o "homem das neves" fala de Oryx e Crake (a mulher que ele amava e seu melhor
amigo) como se fossem deuses
criadores, despertando-lhes a
idéia de mitologia e religião.
O romance de Atwood alterna o
presente do "homem das neves",
sozinho na aurora de uma nova
civilização, e o seu passado em algum momento do século 21, num
futuro não muito distante dos
dias de hoje. Os dois tempos da
narrativa convergem para a catástrofe que teria destruído o velho
mundo e inaugurado o novo de
uma tacada só. É o que mantém a
atenção e o suspense, pois, embora saiba o que havia antes e o que
veio depois, é justamente nesse
ponto de passagem que está todo
o núcleo dramático do romance:
não apenas a origem do inferno
mas o fim da relação entre o "homem das neves", Oryx e Crake.
O discurso de Atwood representa uma preocupação que está
no ar hoje (entre ecologistas e ambientalistas sobretudo). É um discurso com mensagens um tanto
óbvias, embora não menos pertinentes, que fala de um desdobramento possível: as experiências
dos homens com a natureza podem sair do controle e acabar destruindo os próprios homens e o
mundo em que vivem.
É o ponto mais fraco, como se o
texto não passasse de um meio
para a transmissão das idéias da
autora. Apesar disso e do recurso
à facilidade da teoria conspiratória, que dá ao romance um tom, se
não de fórmula, pelo menos de vício, "Oryx e Crake" é um livro que
se lê com o maior prazer.
Oryx e Crake
Autora: Margaret Atwood
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Quanto: preço a definir (344 págs.)
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