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CARTAS DA EUROPA
A morte de Revel
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Eu gosto de clichês. Existe
sempre na frase feita um
fundo de verdade que deve ser
escutado e respeitado. Exemplo?
A morte de Jean-François Revel,
no passado fim de semana, em
Paris. Tinha 82 anos e, sem exagero, não há jornal que não escreva, em letras gordas, que a
França ficou mais pobre. Ficou
mesmo. Revel era uma luz de sanidade no meio da loucura gaulesa. E, num país sem grande tradição liberal, Revel aprendera
com Raymond Aron que nem
sempre as causas mais populares
são as causas mais necessárias. O
ar do tempo vale o que vale. Revel valeu mais.
Nasceu em Marselha, corria
1924. Foi escritor, jornalista, professor, membro da Resistência,
um "imortal" da Academia
Francesa. E colunista da revista
"Le Point", onde escreveu artigos
até ao fim. Em "Pourquoi des
Philosophes?" (1957), obra inicial, procurou inquirir a influência decisiva, e negativa, do pensamento marxista e existencialista na França contemporânea.
Paris desabou sobre Revel. Revel
não se importou. Foi avançando
sempre e, como Karl Popper em
"The Open Society and Its Enemies", o seu ideal era Atenas,
não Esparta: uma sociedade livre e, mais do que livre, aberta
ao mundo e às influências do
mundo.
Por isso Revel riu sempre das
discussões correntes sobre o
"fantasma da globalização", que
ainda horroriza algumas almas
subdesenvolvidas. Em "L'Obsession Anti-Américaine" (2002), o
último dos seus trabalhos, Revel
ocupa longas páginas a demolir,
um por um, os mitos que fazem
sucesso nas passeatas de Porto
Alegre. A começar pela crença ligeiramente primitiva de que a
"globalização" é um processo
uniforme, comandado por um
grupo qualquer de sábios que,
reunidos numa torre de marfim,
combinam entre si um plano para dominar o mundo.
Revel argumenta contra a fantasia. E argumenta com o senso
comum. Caminhemos pelas ruas
de Nova York. Que vemos nós?
Vemos o mundo inteiro perante
os nossos olhos: arte africana,
música árabe, gastronomia japonesa, rostos nórdicos, cinema
iraniano, literatura italiana,
samba brasileiro. A idéia de
uma América uniformizadora e
cruel esquece a evidência mais
básica: as 1.700 orquestras sinfônicas que existem, os 8 milhões
que assistem a concertos de todo
o tipo, vindos de toda a parte. E
os 500 milhões que visitam os
museus americanos para ver arte dos quatro cantos do mundo.
Uma posição ideológica? Não.
Revel transcende a ideologia, situando-se na história. E um conhecimento vago de história ensina rapidamente que a história
da globalização é a história da
humanidade: de como esta foi
abandonando o seu isolamento
paroquial e territorial, entrando
em contato com outros povos.
Podemos tentar travar tudo isso,
sem dúvida. Se estivermos dispostos a fechar fronteiras, aprisionar pessoas ao seu lugar, negar a presença dos outros e evitar falar com eles. No fundo, se
estivermos dispostos a decair,
empobrecer, embrutecer. De volta à selva e aos macacos nossos
irmãos.
Disse que o ideal de Revel era
Atenas, não Esparta. Repito. E
repito para lembrar: a abertura
de Atenas legou arte, música,
teatro e pensamento à humanidade. Mas é um erro acreditar
que Esparta não legou coisa nenhuma. Na verdade, legou sim:
depois da vitória no Peloponeso,
que tanto impressionou Platão,
Esparta legou o paradigma do
Estado totalitário, que se prolongou até o século 20. No desejo de
fechamento está sempre um desejo de domínio. Primeiro, sobre
os nossos. Depois, sobre os outros. A história é o cemitério dessas prisões.
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