São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2006

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CARTAS DA EUROPA

A morte de Revel

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Eu gosto de clichês. Existe sempre na frase feita um fundo de verdade que deve ser escutado e respeitado. Exemplo? A morte de Jean-François Revel, no passado fim de semana, em Paris. Tinha 82 anos e, sem exagero, não há jornal que não escreva, em letras gordas, que a França ficou mais pobre. Ficou mesmo. Revel era uma luz de sanidade no meio da loucura gaulesa. E, num país sem grande tradição liberal, Revel aprendera com Raymond Aron que nem sempre as causas mais populares são as causas mais necessárias. O ar do tempo vale o que vale. Revel valeu mais.
Nasceu em Marselha, corria 1924. Foi escritor, jornalista, professor, membro da Resistência, um "imortal" da Academia Francesa. E colunista da revista "Le Point", onde escreveu artigos até ao fim. Em "Pourquoi des Philosophes?" (1957), obra inicial, procurou inquirir a influência decisiva, e negativa, do pensamento marxista e existencialista na França contemporânea. Paris desabou sobre Revel. Revel não se importou. Foi avançando sempre e, como Karl Popper em "The Open Society and Its Enemies", o seu ideal era Atenas, não Esparta: uma sociedade livre e, mais do que livre, aberta ao mundo e às influências do mundo.
Por isso Revel riu sempre das discussões correntes sobre o "fantasma da globalização", que ainda horroriza algumas almas subdesenvolvidas. Em "L'Obsession Anti-Américaine" (2002), o último dos seus trabalhos, Revel ocupa longas páginas a demolir, um por um, os mitos que fazem sucesso nas passeatas de Porto Alegre. A começar pela crença ligeiramente primitiva de que a "globalização" é um processo uniforme, comandado por um grupo qualquer de sábios que, reunidos numa torre de marfim, combinam entre si um plano para dominar o mundo.
Revel argumenta contra a fantasia. E argumenta com o senso comum. Caminhemos pelas ruas de Nova York. Que vemos nós? Vemos o mundo inteiro perante os nossos olhos: arte africana, música árabe, gastronomia japonesa, rostos nórdicos, cinema iraniano, literatura italiana, samba brasileiro. A idéia de uma América uniformizadora e cruel esquece a evidência mais básica: as 1.700 orquestras sinfônicas que existem, os 8 milhões que assistem a concertos de todo o tipo, vindos de toda a parte. E os 500 milhões que visitam os museus americanos para ver arte dos quatro cantos do mundo.
Uma posição ideológica? Não. Revel transcende a ideologia, situando-se na história. E um conhecimento vago de história ensina rapidamente que a história da globalização é a história da humanidade: de como esta foi abandonando o seu isolamento paroquial e territorial, entrando em contato com outros povos. Podemos tentar travar tudo isso, sem dúvida. Se estivermos dispostos a fechar fronteiras, aprisionar pessoas ao seu lugar, negar a presença dos outros e evitar falar com eles. No fundo, se estivermos dispostos a decair, empobrecer, embrutecer. De volta à selva e aos macacos nossos irmãos.
Disse que o ideal de Revel era Atenas, não Esparta. Repito. E repito para lembrar: a abertura de Atenas legou arte, música, teatro e pensamento à humanidade. Mas é um erro acreditar que Esparta não legou coisa nenhuma. Na verdade, legou sim: depois da vitória no Peloponeso, que tanto impressionou Platão, Esparta legou o paradigma do Estado totalitário, que se prolongou até o século 20. No desejo de fechamento está sempre um desejo de domínio. Primeiro, sobre os nossos. Depois, sobre os outros. A história é o cemitério dessas prisões.


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