São Paulo, quinta-feira, 03 de junho de 2010

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NINA HORTA

Por que comemos o que comemos?


É preciso entender por que alguns querem copiar as receitas da Ana Maria, e outros, as do Troisgros

MORRO DE inveja de quem relaciona os cadernos dos jornais entre si. Assuntos separados que devem se misturar na cabeça como a comida num grande panelão comunitário. Tipo "estamos comendo carne mais barata porque a Bolsa, os árabes, o desmatamento, a remoção de impostos, a moda da França, a tradição do Brasil"...
Talvez um jornal não devesse ter cadernos, e sim ser confuso como o próprio mundo.
Para entender um pouco mais sobre o setor de comidas, há que ler o caderno de economia (Bolsa do frango), o caderno de moda (ui, ui, qual a "trend" da semana passada? Gótica? Arroz-negro com lulas em "su tinta"?), pesquisar empregos (pode estar na moda e fazer bem à saúde, mas com meu salário de cozinheiro...).
Há que ler ainda o caderno de viagens (a comida do outro), o caderno de política (grande investimento em soja), meio ambiente (corre e come, porque pelo jeito vai se extinguir já, já), os cadernos de literatura, cinema, TV, teatro (por que café de rico de novela fica quente a manhã inteira dentro de bules de louça?), as palavras cruzadas (pequenos tubérculos extraídos de uma planta... com gosto de amêndoa, cinco letras, "chufa").
Realmente, só um caderno não basta. Para descobrirmos por que comemos o que comemos, não adianta saber a quantidade de vitaminas que precisamos por dia, é preciso entender por que alguns querem copiar as receitas da Ana Maria, e outros, as do Troisgros ou as da Palmirinha.
A comida não é só nutrição. Comida é entrelaçada com ideias. Nunca ouvimos alguém dizer: "Ai que desejo me deu de tomar uma xicrinha de riboflavina". O animal que somos quer mais. Quer, civilizadamente, confundir.
Passando por esses instintos biológicos básicos, como foi que nos viramos para conseguir a comida com a qual sobreviveríamos naquele lugar e naquele tempo?
Foi sempre um pega pra capar. Pescando com arpão, pastoreando, caçando silenciosamente noite adentro. Pra não morrer! E esses modos de procurar comida dão formato ao nosso jeito de rezar, nossas histórias, nossas fantasias.
Com o tempo, fomos ficando longe da pesca e da caça e da ida ao poço. Nossa mata, nosso mar, nossa cachoeira são o supermercado da esquina. Saímos, pimpões, com a sacola sustentável. Vamos comprar o que é bom para a saúde, mas temos restrições dentro do que nos é oferecido.
É, temos realmente de visitar todos os cadernos do jornal para conservar ou mudar nosso modo de comer. A fome, como evitá-la, o jejum, a dieta, a anorexia, a comida da classe alta, o papel das comemorações, dos churrascos na véspera de eleição, dos casamentos concorridos, das festas de são João, dos bar-mitzvás, das formaturas.
Historinhas de comida, reminiscências, as técnicas usadas para cozinhar, a nostalgia do fogão a lenha, um cheiro, a infância, o gosto próprio de cada um. Comer para sobreviver é coisa que todo animal faz e nós tínhamos de embrulhar essa simplicidade num nó cego.
Um monte de causas é responsável pelo que comemos. Fatores que construímos, não dentro de um laboratório, mas num corpo a corpo com o mundo (e com os cadernos).
Nem sempre vamos conseguir embaralhar as informações a ponto de tomar consciência total de um assunto tão vasto. Mas que vale a pena tentar, vale.

ninahorta@uol.com.br


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