São Paulo, Quinta-feira, 03 de Junho de 1999
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MÚSICA
Otto e Zeca Baleiro discutem a nova MPB


Representantes de vertentes distintas da moderna música pop nacional se reúnem em conversa


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Representantes da fronte tecnológica do novo pop brasileiro, o pernambucano Otto, 31, e o maranhense Zeca Baleiro, 32, tomam dianteira no desejo de lançar a velha MPB em terreiros menos arcaicos que os habituais.
Inspirada pela identidade dos dois no trato com a modernização da MPB -e por diversas diferenças entre os álbuns "Samba pra Burro" (98), de Otto, e "Vô Imbolá" (99), de Zeca Baleiro-, a Folha propôs um encontro entre os dois.
Reunidos num restaurante da Vila Madalena, em São Paulo, onde ambos estão radicados, falaram sobre a nova MPB, a necessidade de explorar os avanços tecnológicos, suas relações com os "modernettes", suas semelhanças e diferenças. Leia trechos.

Folha - Para fazer música popular brasileira "moderna" o uso da tecnologia e da eletrônica é fundamental, é necessário?
Otto -
É usar cueca e não usar cueca. Depende da ocasião. Gosto de usar, é confortável (risos).
Zeca Baleiro - Eu acho que a gente não pode mais fechar os olhos para as possibilidades que a tecnologia traz e sempre trouxe. As possibilidades hoje são infinitas, mas acho que não é imprescindível ou indispensável. Sempre vai haver aquele cara que resolve a parada tocando seu violão. Não vai desaparecer.
Folha - Vocês usarem esses recursos gera críticas tradicionalistas, até de deturpação da MPB.
Zeca -
Tem um certo tipo de gente que acha que isso não é música, que o uso disso é extramusical ou antimusical. Acho que depende de uma coisa que está na origem -se você tem essência e musicalidade, pode batucar na mesa e rola um som. Ou pode ter samplers, sequencers e não fazer nada. Aliás, eu já vi isso, superprodução e resultado musical nenhum.
Otto - Meu Deus já virou digital. Se quero fazer alguma coisa nesse país além da minha música, que é muito simples, o digital, o produtor, o DJ dão um charme à música, uma identidade de quebrador disso aí. Mesmo que eu não entenda tanto -não tenho nem computador particular-, se romper algumas barreiras, estou contribuindo.
Folha - Vocês sentem, em 1999, pressão contra essas práticas?
Zeca -
Quando o Barão Vermelho lançou "Puro Êxtase", nego caiu matando porque a banda de rock'n'roll estava fazendo jungle. É rock puro. Usaram tecnologia a serviço. Há uma patrulha grande, um ranço da MPB, dos decanos.
Otto - Ouço disco de Cartola e já começo a ouvir os bits que poderia colocar lá. Eu queria romper, tem uma coisa da música de desbloquear preconceito, que é muito bom. Já passei preconceito, por ser músico, tocar pandeiro e ser branco. Eu jogava bola, 80% era "black", 15%, mestiço, e galego só eu. Há outros bloqueios ainda, da música machista. A eletrônica ainda está em outros preconceitos brasileiros, da própria sexualidade mesmo. O samba é um local muito aberto, mas precisa quebrar esses preconceitos aí. A música eletrônica é boa porque quebra também.
Folha - Zeca não se furta em seu disco a manifestar restrições, até ironia, contra a cultura que envolve a música eletrônica.
Zeca -
O Otto usa mais intensamente a eletrônica, mas meu disco também tem isso. A crítica não carrega um preconceito. Se jogo para todas as torcidas, como dizem meus detratores, é uma forma de dizer que sou um cara nascido no Nordeste que ouviu MPB e que está, sobretudo, aberto a todo tipo de música, até à mais radical.
Folha - A MPB e o samba atuais englobam variantes como o axé baiano e o pagode paulista. Na opinião de vocês, eles vão bem?
Otto -
No geral, a gente está virando capitalista sem poder ser ainda. Tem muito samba popular sendo mal gravado, visando fábrica de cerveja e publicidade. Muita música baiana também. Mas tem um lado bom do samba que reage.
Zeca - O samba é eterno, é tão forte que nem esse pagode mauricinho enfraquece. Ao contrário, acabou fortalecendo. Nunca o Martinho da Vila vendeu tanto.
Otto - A massificação banaliza. Se fosse só um grupo, mas as letras são as mesmas, o tratamento é o mesmo, o produtor. Está muito vendável. Tem uns que adoro o som que tiram, mas não exploram a parte mais legal da música popular brasileira, que é a poesia do samba, as letras. Mas estão defendendo o leite das crianças.
Zeca - Acho até que é mais complexo que isso. Não é dizer que é só mercantilismo. Vivemos num país cada vez mais miserável e deseducado, de miséria cultural também. Essa música é fruto disso também. Não dá para dizer que é música de má qualidade, que os caras só querem ganhar grana. Eu também quero. O que fazem um cara como Mano Brown, dos Racionais, e outro como Netinho, do Negritude Jr., saírem do mesmo lugar e um ter discurso contundente, agressivo, raivoso, e o outro, discurso bom-moço e conciliador? Não sei. É um mistério da vida, da mobilidade social.
Otto - O que reina neste país atualmente é uma grande cegueira, falta se verem as coisas mais óbvias do mundo. Estamos no meio de um labirinto, mas os caminhos para sair são muito grandes. Estamos à beira de uma grande revolução.
Zeca - Ih, rapaz!
Otto - Basta a gente se emocionar mais, não com coisa banal que já está aí. É o fio da meada. O diabo já está mostrando a cara, estamos tête-à-tête.
Zeca - Sou contraditório, falo que acho que o mundo tem salvação, sou messiânico, mas não acredito em revolução.
Otto - Mas é um cordão, quando a gente chegar nele... Ah, você rouba muito? Continue, você só não vai pegar mais na minha máquina. O que tem ainda de Pitta, de corrupção, eles já não estão se aguentando em pé.
Zeca - Não sei, é aquela história: mata um e aparece outro maior.
Otto - É, tem isso, mas já vi tanto monstro aí, não é possível... Eu estava vendo seu disco, quando é no português, no clássico, é tão inteligente. É muito mais difícil fazer uma música cabeça para os cabeças para depois o popular entender. É mais fácil pegar uma coisa muito boa do popular e jogar para o cabeça. O cabeça vai compreender muito mais rápido. Procuro esse elo aí, a qualidade popular.
Folha - Vocês são "cabeça"?
Otto e Zeca -
Não.
Otto - Quando falo "cabeça", são pessoas mais situadas, que podem estar lendo livros e não estão nem sabendo que livro é aquele.
Zeca - A inteligência é uma armadilha. A burrice é uma cova funda, mas a inteligência é uma coisa perigosa. Você não pode virar refém dos inteligentes. Não quero ser burro, não prego a burrice, mas tem que ter o que fazer com a inteligência, com a informação, senão é um vazio total. Há o consumidor de cultura, o "culturette", que vê o último filme do Altman, ouve o último disco do Otto, mas não melhora como homem.
Folha - Otto foi adotado como "queridinho" por esse público...
Otto -
Não me desculpo, estou adorando. Mas, quando faço minha música, tenho certeza de que as pessoas mais difíceis de serem contaminadas vão ser essas aí. São também as que podem mais mover a sociedade. Trago para essas pessoas meu pé na cozinha, meu temperozinho, meu sambinha pra burro. É "Samba pra Burro", não boto placa de inteligência. Pelo contrário, prefiro a placa de burro.
Folha - Com Zeca, a reação desse público é mais ambígua.
Zeca -
É, eu faço questão que seja, acho que cultivo isso também, até inconscientemente. Não é deliberado. Quando a Gal me chamou para gravar, começaram a me chamar de "darling", "chuchu", alguma coisa assim. É depreciativo. Acho horrível, não quero ser "darling" de porra nenhuma. Só quero fazer minha música, ser amado por algumas pessoas, odiado por outras. Otto está mais vulnerável, fez disco com produção de DJ, que já o coloca num patamar.
Otto - Fui mais aberto. Eu tinha só música na cabeça. Zeca tem um trabalho de música e violão, acho que aprendeu muito mais que eu. Eu não, tive que ser aberto porque sabia das minhas limitações.
Zeca - Mas você acha que eu não tenho limitações?
Otto - Eu sei que tem, mas já vai na viola, tem a harmonia, faz nos dedos. Eu só tinha isso, fui percussionista de uma banda punk feito o Mundo Livre S/A, fazendo samba, mangue beat. Só pulava. Agora é que comecei a discutir música pra valer, passaram a me ouvir.
Zeca - A minha trajetória é muito mais solitária. Nunca participei de movimento nenhum. Mesmo quando morava em São Luís, não tinha diálogo estético com ninguém, só uns dois ou três caras mais velhos mesmo. Me relacionava com algum pessoal de banda de rock, de punk, que no fim dos 80 ensaiou um tipo de movimento que não foi adiante. Então vim para cá e fiz meu caminho.
O fato de o cara ser incensado, e talvez o incenso do momento seja o Otto (risos), não é culpa dele. É sempre um perigo. Esse mundo "culturette" é imediatista e novidadeiro. Você só não pode se iludir, tem que estar acima disso. Não pode se achar o rei da cocada preta.
Folha - Faz sentido este encontro entre vocês dois?
Otto -
Totalmente.
Zeca - Eu adoro o trabalho dele.
Otto - Para mim é importante estar conhecendo ele. Ele já tinha me convidado uma vez, eu viajei.
Zeca - Ele foi convidado para o coro de "Vô Imbolá".
Otto - Isso aí é o grande lance. Para mim é uma honra, só soma. A música da gente se parece, é popular, paulista, somos de Estados de praia e estamos em São Paulo.
Zeca - Não se faz mais esse tipo de coisa, não é? Quando as pessoas que faziam música eram politizadas, havia aquelas discussões de PUC, Tuca, shows viravam comícios. Hoje, com esse esvaziamento todo, não acontece mais.
Folha - Cada um de vocês pode falar sobre o disco do outro?
Zeca -
Estou fazendo um arranjo para "TV a Cabo". Posso mixar com Paulo Diniz?
Otto -Por favor! Ele é de Pesqueira, é vizinho meu (cantarola uma música de Paulo Diniz). "TV a Cabo" também é uma festinha de rua. Ele tem uma voz muito legal.
Zeca - Muito boa, rock'n'roll, rouca. Identifiquei "TV a Cabo" com algumas músicas dele. Gosto muito de "Café Preto", um samba fragmentado, de pé quebrado. E o "Bob" é genial, com um tantinho de letra fala tudo.
Otto - Zeca fez o "Pagode Russo", do Luiz Gonzaga, que é tudo que eu queria fazer com essas intervenções de tecnologia. Adoro a influência árabe nos arranjos. Tem a porção de menestrel também, de Zé Ramalho, que, para mim, é muito bom. É um disco brasileiro, simples, fácil, sem delongas.
Zeca - Eu vejo muitas semelhanças no universo de referências, de rádio. Mas a forma como processamos e metabolizamos esse caldeirão é diferente, um mistério, que eu não ousaria tentar explicar. Eu não consigo entender por que ele pega, processa e faz "Bob" e eu faço "Vô Imbolá". O mundo do show business é sobre areia movediça, há pessoas com quem gostaria de dialogar, mas não vejo como. O acaso não favorece os encontros, ou a postura do outro é meio arredia. Fred Zero Quatro é assim.
Otto - Uma coisa de que fiquei muito longe foi a parada do trovador nordestino. Vi muito no seu CD, o Zé Ramalho. É bem da minha, mas eu não faço. Não tem um triângulo no meu disco, é até uma autocrítica. Estou longe de Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Alceu Valença, por implicações "manguebeatianas" (risos).
Zeca - Chico César me contou que se encontrou com Chico Science, pouco antes da morte dele, e ele falou que o disco seguinte ia chamar "Geraldo e Alceu". A idéia de movimento é de negação, de ruptura com o que vem antes, mas teria sido muito importante para essa idéia de agregação e integração que há na música.
Folha - Há uma diferença de discurso entre vocês. Reagindo ao caos de referências, Otto desorganiza e estilhaça mais o discurso. Zeca tenta reordenar o caos, produzir dele um discurso ideológico.
Zeca -
Será que é assim tão claro? Não sei, acho meu CD confuso. Não vim para esclarecer, mas também não para confundir pela confusão. É lançar mais fagulha na história, trazer referências. É um tempo tão sem referência, sem chão... Não acho que Otto estilhaça tanto assim. A música dele é fragmentada, mas guarda um monte de informações, do maracatu ao samba. Essas duas formas de ver podem ser harmoniosas. Não vou dizer "o Otto, aquele crápula"...
Otto - Não fala isso, eu vou chorar aqui (risos).
Folha - Por que os músicos só dialogam com suas turmas?
Zeca -
É um monte de coisa. Há muita vaidade em jogo, há o cerco da tribo. Se o Otto, por exemplo, ficar escravo dos "modernettes" que o adotaram, não vai poder dialogar com o Zeca Pagodinho ou o Zé Ramalho, que são artistas geniais. Esse preconceito tem que acabar.
Otto - O mangue beat me calou um pouco, mas acho que agora com meu trabalho me soltei mais. Estou na mesma parada, acho que sou um bom mangue boy, mas não tenho tribo. Pessoas com quem quero trabalhar não faltam.
Folha - Por que vocês acham que o Nordeste se mantém como um reservatório tão importante para novos artistas brasileiros?
Zeca - Acho que a mesma relação que existe entre o Nordeste e o Brasil é a que existe entre a África e o mundo. A África é o maior celeiro cultural, musical pelo menos. Acho que há uma relação direta com a pobreza, com a necessidade.
Otto - É a história do assum preto. A turma fura seu olho para ele cantar melhor na dor. Se os "modernettes" me foderem, furo meu olho e viro o maior profeta (risos).


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