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RESENHA DA SEMANA
A neurose narrativa
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Já faz tempo que não se pode
mais gritar "Yankees, Go Home!" a plenos pulmões sem um
certo constrangimento. Primeiro, porque a frase acabou
associada aos nacionalismos
mais tacanhos. E, depois, porque o imperialismo americano
entrou em nova fase e já não
precisa conquistar mais nada.
Reina sobre terra arrasada.
"Home" passou a ser o mundo
inteiro.
É o que se deduz pelo menos
quando se lêem coisas como a
penúltima edição da esclarecida (e não só para padrões americanos) revista "The New Yorker", um número especial
apresentando uma lista de "20
Escritores para o Século 21".
São todos americanos, com o
agravante de formarem uma
espécie de amostra multicultural (há a negra de origem haitiana, o índio, o latino, o judeu
israelense, a contista de origem
indiana, os romancistas de origem chinesa, grega etc.), como
se o mundo estivesse ali representado e o inglês fosse o seu
esperanto. Ou melhor, como se
não existisse outra língua ou
outra literatura.
O sub-título "o futuro da ficção americana", definindo as
fronteiras da seleção, aparece
pequenininho ao pé da capa da
revista. Na sua nova fase, o imperialismo cultural americano
quer dar a ilusão de ter incorporado o mundo inteiro, e ignora solenemente a existência
do outro. Na sua "auto-suficiência multicultural", não
existe nada além de si mesmo
-e, se existe, não interessa.
Todo esse preâmbulo não
quer dizer que não haja escritores bons, e mesmo muito bons,
entre os vinte selecionados.
David Foster Wallace é um
deles. Seu livro mais recente,
"Brief Interviews with Hideous
Men" ("Entrevistas Curtas com
Homens Escrotos"), uma coletânea de contos recém-lançada
nos Estados Unidos, só confirma a qualidade já presente em
sua obra anterior, sobretudo
no mastodôntico "Infinite Jest"
("Graça Infinita"), de 1996.
O que Wallace escreve está
em sintonia com dois dos
maiores autores americanos da
segunda metade do século:
Thomas Pynchon e William
Gaddis, morto no ano passado
e autor do monumental "The
Recognitions" ("Os Reconhecimentos", 1955), curiosamente
ignorado num mercado como
o brasileiro, sempre disposto a
publicar com a maior presteza
qualquer novidade lançada nos
Estados Unidos, por mais mediana que seja.
A inventividade narrativa de
Wallace propõe transformar o
real em jogo para em seguida
desfazê-lo e recriá-lo. Cada
conto de "Brief Interviews..."
assume uma nova forma e um
lugar lúdico de narrar. A começar pelas entrevistas em que os
homens mais misóginos, machistas, egoístas, preconceituosos, reacionários e estúpidos
dão suas opiniões sobre as mulheres, ou relatam suas relações
com elas.
É o caso do sujeito que, sem
qualquer interesse político na
vida, grita incontrolavelmente,
e para o horror e infelicidade
das mulheres com quem eventualmente está, "Viva as Forças
da Liberdade Democrática!"
sempre que tem um orgasmo.
Wallace encontrou o melhor
do seu humor nessas vozes imbecis e repetitivas, um humor
negro resultante de um olhar
impiedoso, mas paradoxalmente compassivo ao fazê-las
intimamente reconhecíveis pelo leitor, o que garante não só a
sua graça, mas uma riqueza de
percepção.
São as explicações mais minuciosamente neuróticas do
mundo, a ponto de muitas vezes terem de recorrer a notas de
rodapé ainda mais idiotas para
se "fazer entender", o que já
ocorria extensivamente em
"Infinite Jest".
Na pseudo-imbecilidade da
narração, o que se descortina é
uma imbecilidade cômica do
mundo, e não há como não rir
tanto mais desoladores parecem os "quadros clínicos" descritos.
Em "A Pessoa Deprimida",
por exemplo, Wallace cria uma
neurose narrativa na relação
entre uma terapeuta e sua paciente, enlouquecendo o leitor
com a estupidez argumentativa
e redundante de ambas, numa
espiral infinita de interpretações superpostas. Em "Adult
World", é a obsessão de uma
mulher em agradar sexualmente o marido que a leva (e com
ela o leitor, rindo histericamente) às raias da loucura.
Em uma das infames entrevistas, o leitor(a) de repente
percebe que a proposta indecente que o entrevistado diz
costumar fazer às mulheres pode muito bem estar sendo feita,
indiretamente, ao próprio entrevistador(a) e, em consequência, ao próprio leitor(a)
-as perguntas do entrevistador estão sempre em branco,
para serem preenchidas pela
imaginação do leitor a partir
das respostas do entrevistado.
Percebe de repente que o que
o autor lhe propõe é de certa
maneira ser personagem. E
tentar entender a literatura como o que ela é. Um jogo, sem
dúvida dos mais divertidos.
Avaliação:
Livro: Brief Interviews with Hideous
Men
Autor: David Foster Wallace
Lançamento: Little, Brown and
Company
Quanto: US$ 24 (273 págs.)
Onde encomendar:
www.wordsworth.com,
www.amazon.com. www.bn.com etc.
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