São Paulo, Sábado, 03 de Julho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RESENHA DA SEMANA
A neurose narrativa

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Já faz tempo que não se pode mais gritar "Yankees, Go Home!" a plenos pulmões sem um certo constrangimento. Primeiro, porque a frase acabou associada aos nacionalismos mais tacanhos. E, depois, porque o imperialismo americano entrou em nova fase e já não precisa conquistar mais nada. Reina sobre terra arrasada. "Home" passou a ser o mundo inteiro.
É o que se deduz pelo menos quando se lêem coisas como a penúltima edição da esclarecida (e não só para padrões americanos) revista "The New Yorker", um número especial apresentando uma lista de "20 Escritores para o Século 21".
São todos americanos, com o agravante de formarem uma espécie de amostra multicultural (há a negra de origem haitiana, o índio, o latino, o judeu israelense, a contista de origem indiana, os romancistas de origem chinesa, grega etc.), como se o mundo estivesse ali representado e o inglês fosse o seu esperanto. Ou melhor, como se não existisse outra língua ou outra literatura.
O sub-título "o futuro da ficção americana", definindo as fronteiras da seleção, aparece pequenininho ao pé da capa da revista. Na sua nova fase, o imperialismo cultural americano quer dar a ilusão de ter incorporado o mundo inteiro, e ignora solenemente a existência do outro. Na sua "auto-suficiência multicultural", não existe nada além de si mesmo -e, se existe, não interessa.
Todo esse preâmbulo não quer dizer que não haja escritores bons, e mesmo muito bons, entre os vinte selecionados.
David Foster Wallace é um deles. Seu livro mais recente, "Brief Interviews with Hideous Men" ("Entrevistas Curtas com Homens Escrotos"), uma coletânea de contos recém-lançada nos Estados Unidos, só confirma a qualidade já presente em sua obra anterior, sobretudo no mastodôntico "Infinite Jest" ("Graça Infinita"), de 1996.
O que Wallace escreve está em sintonia com dois dos maiores autores americanos da segunda metade do século: Thomas Pynchon e William Gaddis, morto no ano passado e autor do monumental "The Recognitions" ("Os Reconhecimentos", 1955), curiosamente ignorado num mercado como o brasileiro, sempre disposto a publicar com a maior presteza qualquer novidade lançada nos Estados Unidos, por mais mediana que seja.
A inventividade narrativa de Wallace propõe transformar o real em jogo para em seguida desfazê-lo e recriá-lo. Cada conto de "Brief Interviews..." assume uma nova forma e um lugar lúdico de narrar. A começar pelas entrevistas em que os homens mais misóginos, machistas, egoístas, preconceituosos, reacionários e estúpidos dão suas opiniões sobre as mulheres, ou relatam suas relações com elas.
É o caso do sujeito que, sem qualquer interesse político na vida, grita incontrolavelmente, e para o horror e infelicidade das mulheres com quem eventualmente está, "Viva as Forças da Liberdade Democrática!" sempre que tem um orgasmo.
Wallace encontrou o melhor do seu humor nessas vozes imbecis e repetitivas, um humor negro resultante de um olhar impiedoso, mas paradoxalmente compassivo ao fazê-las intimamente reconhecíveis pelo leitor, o que garante não só a sua graça, mas uma riqueza de percepção.
São as explicações mais minuciosamente neuróticas do mundo, a ponto de muitas vezes terem de recorrer a notas de rodapé ainda mais idiotas para se "fazer entender", o que já ocorria extensivamente em "Infinite Jest".
Na pseudo-imbecilidade da narração, o que se descortina é uma imbecilidade cômica do mundo, e não há como não rir tanto mais desoladores parecem os "quadros clínicos" descritos.
Em "A Pessoa Deprimida", por exemplo, Wallace cria uma neurose narrativa na relação entre uma terapeuta e sua paciente, enlouquecendo o leitor com a estupidez argumentativa e redundante de ambas, numa espiral infinita de interpretações superpostas. Em "Adult World", é a obsessão de uma mulher em agradar sexualmente o marido que a leva (e com ela o leitor, rindo histericamente) às raias da loucura.
Em uma das infames entrevistas, o leitor(a) de repente percebe que a proposta indecente que o entrevistado diz costumar fazer às mulheres pode muito bem estar sendo feita, indiretamente, ao próprio entrevistador(a) e, em consequência, ao próprio leitor(a) -as perguntas do entrevistador estão sempre em branco, para serem preenchidas pela imaginação do leitor a partir das respostas do entrevistado.
Percebe de repente que o que o autor lhe propõe é de certa maneira ser personagem. E tentar entender a literatura como o que ela é. Um jogo, sem dúvida dos mais divertidos.


Avaliação:     


Livro: Brief Interviews with Hideous Men Autor: David Foster Wallace Lançamento: Little, Brown and Company Quanto: US$ 24 (273 págs.) Onde encomendar: www.wordsworth.com, www.amazon.com. www.bn.com etc.

Texto Anterior: O velho e os Lobos: Os laços de "Cora" nas linhas de Julia Kristeva
Próximo Texto: Campos do Jordão: Festival começa sem atração internacional
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.