São Paulo, terça-feira, 03 de setembro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

Nunca tive tanto orgulho de ser ateu

Os tsaatan estão em vias de extinção. Restam apenas 50 famílias isoladas entre as montanhas no extremo norte da Mongólia. São criadores de renas que vivem nas florestas (taiga) na fronteira com a Rússia. Para chegar até eles, só a cavalo ou de helicóptero. Fui a cavalo.
Passei dois meses na Mongólia, com uma bolsa de uma fundação portuguesa, para colher material para um livro. Os tsaatan vivem no norte da região de Khövsgöl (pronuncia-se "ruvsgul"), conhecida como terra de xamãs. Para visitar os tsaatan, é preciso uma autorização da polícia de fronteira, que fica num barracão no vilarejo de Tsagaannuur. Numa das paredes, há um grande mapa da região, coberto por uma cortina de cetim vermelho. O comandante gordo está sentado na mesa ao fundo, entre dois soldados desconfiados. Parece cena de uma peça de Gógol.
Um guia local, minha intérprete e eu levamos um dia para atravessar a taiga de Khounkher e as montanhas, por um caminho de pedras e pântanos, até o vale de Menghe Bulag, onde 14 famílias tsaatan passam o verão. Os tsaatan são nômades como os mongóis, mas falam uma outra língua, próxima do turco. E também não vivem em iurtas, mas em tendas cônicas ("tepee") como os índios americanos. São da etnia tuva, que chegou a constituir uma "república independente" do outro lado da fronteira, anexada em 44 pela União Soviética.
No caminho, intransponível no inverno, encontramos um fotógrafo francês. Está voltando dos tsaatan. Está decepcionado. Diz que já não são os mesmos. Querem dinheiro e pedem para ser fotografados. Já não são os bons selvagens das suas viagens anteriores. Recentemente, um americano e um japonês vieram visitá-los de helicóptero. O contato com o mundo exterior os corrompeu.
Os tsaatan vivem das renas. Vendem os chifres para intermediários mongóis, que os revendem aos chineses e aos japoneses. Os chifres das renas crescem e secam todos os anos. Os chineses e os japoneses, que atribuem poderes terapêuticos e afrodisíacos ao produto, pagam mais pelos chifres que ainda estão irrigados de sangue, e os tsaatan passaram a cortá-los no início do verão, quando ainda é muito arriscado e doloroso para as renas.
Ao chegarmos ao vale, os homens estão reunidos numa tenda, jogando cartas e bebendo vodca. Não nos cumprimentam quando entramos, o que é inconcebível na Mongólia. Somos ignorados. Estão cheios dos estrangeiros que vêm observá-los como se fossem animais exóticos no seu habitat natural. Bebem e jogam até de manhã. Mulheres e crianças fazem todo o trabalho em silêncio. São elas que buscam as renas no campo, para evitar que sejam atacadas pelos lobos à noite.
Para quem sempre idealizou o nomadismo como um modo de vida alternativo e libertário, o confronto com a realidade tem pelo menos um lado saudável. Os nômades não são abstrações filosóficas. Levam uma vida fixa e repetitiva. Qualquer desvio pode acarretar a morte. Todos os movimentos e todas as regras são determinados pelas exigências mais fundamentais de sobrevivência nas condições mais extremas. A endogamia está matando os tsaatan. E o contato com o mundo exterior, depois da queda do comunismo no início dos anos 90, só os fez enxergar a própria miséria.
De volta a Tsagaannuur, encontramos um xamã. Nerghüi ("aquele que não tem nome") está jogado na cama, debaixo das cobertas, quando entramos em sua casa às dez da manhã. Fica sem graça ao acordar e deparar com um estrangeiro. É um tipo simpático, mas não está em condições de falar comigo, muito menos com os espíritos. Em poucos minutos, quatro bêbados entram na casa. Um deles se senta ao meu lado. Me encara com olhos vidrados. Demora a entender que não sou o estudante de antropologia americano de quem diz ter ficado amigo um ano antes.
O misticismo atávico da Mongólia, cerceado durante 70 anos de comunismo, voltou como um fantasma recalcado com sede de vingança. Crer virou sinônimo de democracia e liberdade. Os mongóis passaram de uma igreja (o comunismo) para outra (o budismo, o xamanismo). Os ocidentais, com suas fantasias, são ao mesmo tempo incentivadores e vítimas desse processo.
A uns 100 quilômetros de Tsagaannuur, nosso furgão russo acaba atolado num lamaçal. Somos rebocados por um caminhão carregado de gente. Assim que me vê, um passageiro com boné e calça de camuflagem militar diz que é xamã e que alguém da minha família vai morrer se eu não pagar US$ 50 por um pedaço de pau que ele me oferece como amuleto. Sou o único estrangeiro. Dois bêbados se ajoelham e lhe fazem reverências. Há quem vá à Ásia à procura de Deus ou de idealizações exóticas. Eu nunca tive tanto orgulho de ser ateu.


O escritor Bernardo Carvalho passa a escrever quinzenalmente neste espaço.



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