|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
Nunca tive tanto orgulho de ser ateu
Os tsaatan estão em vias
de extinção. Restam apenas 50 famílias isoladas entre as
montanhas no extremo norte da
Mongólia. São criadores de renas
que vivem nas florestas (taiga) na
fronteira com a Rússia. Para chegar até eles, só a cavalo ou de helicóptero. Fui a cavalo.
Passei dois meses na Mongólia,
com uma bolsa de uma fundação
portuguesa, para colher material
para um livro. Os tsaatan vivem
no norte da região de Khövsgöl
(pronuncia-se "ruvsgul"), conhecida como terra de xamãs. Para
visitar os tsaatan, é preciso uma
autorização da polícia de fronteira, que fica num barracão no vilarejo de Tsagaannuur. Numa
das paredes, há um grande mapa
da região, coberto por uma cortina de cetim vermelho. O comandante gordo está sentado na mesa ao fundo, entre dois soldados
desconfiados. Parece cena de
uma peça de Gógol.
Um guia local, minha intérprete e eu levamos um dia para atravessar a taiga de Khounkher e as
montanhas, por um caminho de
pedras e pântanos, até o vale de
Menghe Bulag, onde 14 famílias
tsaatan passam o verão. Os tsaatan são nômades como os mongóis, mas falam uma outra língua, próxima do turco. E também não vivem em iurtas, mas
em tendas cônicas ("tepee") como
os índios americanos. São da etnia tuva, que chegou a constituir
uma "república independente"
do outro lado da fronteira, anexada em 44 pela União Soviética.
No caminho, intransponível no
inverno, encontramos um fotógrafo francês. Está voltando dos
tsaatan. Está decepcionado. Diz
que já não são os mesmos. Querem dinheiro e pedem para ser fotografados. Já não são os bons selvagens das suas viagens anteriores. Recentemente, um americano
e um japonês vieram visitá-los de
helicóptero. O contato com o
mundo exterior os corrompeu.
Os tsaatan vivem das renas.
Vendem os chifres para intermediários mongóis, que os revendem
aos chineses e aos japoneses. Os
chifres das renas crescem e secam
todos os anos. Os chineses e os japoneses, que atribuem poderes terapêuticos e afrodisíacos ao produto, pagam mais pelos chifres
que ainda estão irrigados de sangue, e os tsaatan passaram a cortá-los no início do verão, quando
ainda é muito arriscado e doloroso para as renas.
Ao chegarmos ao vale, os homens estão reunidos numa tenda,
jogando cartas e bebendo vodca.
Não nos cumprimentam quando
entramos, o que é inconcebível na
Mongólia. Somos ignorados. Estão cheios dos estrangeiros que
vêm observá-los como se fossem
animais exóticos no seu habitat
natural. Bebem e jogam até de
manhã. Mulheres e crianças fazem todo o trabalho em silêncio.
São elas que buscam as renas no
campo, para evitar que sejam
atacadas pelos lobos à noite.
Para quem sempre idealizou o
nomadismo como um modo de
vida alternativo e libertário, o
confronto com a realidade tem
pelo menos um lado saudável. Os
nômades não são abstrações filosóficas. Levam uma vida fixa e repetitiva. Qualquer desvio pode
acarretar a morte. Todos os movimentos e todas as regras são determinados pelas exigências mais
fundamentais de sobrevivência
nas condições mais extremas. A
endogamia está matando os tsaatan. E o contato com o mundo exterior, depois da queda do comunismo no início dos anos 90, só os
fez enxergar a própria miséria.
De volta a Tsagaannuur, encontramos um xamã. Nerghüi
("aquele que não tem nome") está jogado na cama, debaixo das
cobertas, quando entramos em
sua casa às dez da manhã. Fica
sem graça ao acordar e deparar
com um estrangeiro. É um tipo
simpático, mas não está em condições de falar comigo, muito menos com os espíritos. Em poucos
minutos, quatro bêbados entram
na casa. Um deles se senta ao meu
lado. Me encara com olhos vidrados. Demora a entender que não
sou o estudante de antropologia
americano de quem diz ter ficado
amigo um ano antes.
O misticismo atávico da Mongólia, cerceado durante 70 anos
de comunismo, voltou como um
fantasma recalcado com sede de
vingança. Crer virou sinônimo de
democracia e liberdade. Os mongóis passaram de uma igreja (o
comunismo) para outra (o budismo, o xamanismo). Os ocidentais,
com suas fantasias, são ao mesmo
tempo incentivadores e vítimas
desse processo.
A uns 100 quilômetros de Tsagaannuur, nosso furgão russo
acaba atolado num lamaçal. Somos rebocados por um caminhão
carregado de gente. Assim que me
vê, um passageiro com boné e calça de camuflagem militar diz que
é xamã e que alguém da minha
família vai morrer se eu não pagar US$ 50 por um pedaço de pau
que ele me oferece como amuleto.
Sou o único estrangeiro. Dois bêbados se ajoelham e lhe fazem reverências. Há quem vá à Ásia à
procura de Deus ou de idealizações exóticas. Eu nunca tive tanto
orgulho de ser ateu.
O escritor Bernardo Carvalho passa a
escrever quinzenalmente neste espaço.
Texto Anterior: "Reality Show": "Ilha" não exibe cenas explícitas Próximo Texto: A nova casa do cinema Índice
|