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RODAPÉ
Afogados na areia
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
A militância política e a atividade psiquiátrica encobriram boa parte da importância da
obra de Dyonélio Machado (1895-1985), resumindo-a à excelência
reconhecida de "Os Ratos" (1935),
romance em que Naziazeno, memorável pobre diabo de linhagem
dostoiévskiana, foge ao cerco das
horas que escoam, sem meios de
resgatar uma dívida tão banal,
quanto excruciante -a que paga
o leite do filho doente.
Gaúcho da fronteira, nascido
em Quaraí, divisa com o Uruguai,
fez sua educação política e iniciação às letras em meio ao exercício
sistemático e arbitrário da violência institucionalizada, sob pretexto de conter os esbirros da Revolução Federalista. Ainda menino,
sentiu o impacto dos horrores
-prisões sem justificativa, tortura, degolas- conduzidos pelo general João Francisco Pereira de
Souza, a "Hiena do Cati".
O engajamento foi sua resposta
pessoal, levando-o tanto à prisão
política -com a eclosão malograda da Intentona, em 1935, já
médico e dirigente local da Aliança Nacional Libertadora, Dyonélio cumpre dois anos preso, entre
Porto Alegre e o Rio de Janeiro,
onde convive com Graciliano Ramos- como ao parlamento, eleito deputado estadual pelo Partido
Comunista, em 1947, e cassado
em seguida, com a decretação da
sua ilegalidade.
As circunstâncias de composição de "Desolação" (1944), um de
seus 12 romances mais ou menos
ignorados e em boa hora relançado pela Planeta, nascem deste
contexto sombrio, o nosso. Parte
de uma tetralogia, cujo elo mais
próximo é "O Louco do Cati"
(1942), incluindo ainda "Passos
Perdidos" (1946) e o temporão
"Nuanças" (1981), "Desolação" se
passa numa semana de dezembro
de 1935, quando um grupo de
amigos tenta, aos trancos e barrancos, voltar a Porto Alegre, depois de uma excursão ao mar e a
cena pública ressente-se do sobressalto da polícia política.
Se, em "O Louco do Cati", a partida para o passeio, em carro emprestado e com cobres contados
-o calhambeque Borboleta, encostado pelo dono numa oficina
mecânica- esbarrava na precariedade dos arranjos, corrida de
obstáculos que diluía a alegria folgazã e, na chegada ao mar, derivava para a defecção forçada, com
desdobramentos funestos, de
dois companheiros, em "Desolação", a rotina subvertida da viagem de volta expressa-se bem na
metáfora do labirinto invisível a
céu aberto, figura precisa do clima
de opressão -política, social,
econômica- que, pouco a pouco, entranha nas almas dos excursionistas, deixando estragos, como aponta, com razão, Ana Paula
Pacheco, que assina o posfácio.
Atravessando as dunas escaldantes, por caminhos instáveis,
ao chiado constante das areias revoltas, Maneco, Luís e Leo erram
de estação forçada em estação forçada, imobilizados e em busca de
novos expedientes, ao sabor da
fragilidade do Borboleta. A exemplo da narrativa picaresca, estradas, estalagens e postos de serviço
são o espaço privilegiado do romance, não de escaramuças ridículas e reparadoras, mas do
(des)encontro de opiniões e motivos de cada um, em que o grupo
se esfacela, perdido em novos labirintos individuais.
Como em "Os Ratos", Dyonélio
dá consistência quase física a este
tempo infernal. Entretecendo o
travamento histórico à penúria
individual, faz com que, nos interstícios da viagem de volta, o
que passaria por série infeliz de
contratempos se adense em impasse crucial. De espectador quase passivo, quase inconsciente dos
sinais dispersos do fechamento
do horizonte político do país, Maneco passa a sentir-se vítima potencial das perseguições arbitrárias, sucumbindo, sob o peso de
um acuamento que o autor, sabiamente, nunca precisa se imaginário ou fundado. Esta irresolução
faz do seu um realismo superior,
alçando "Desolação" ao patamar
de "O Louco do Cati", um dos dez
romances mais essenciais jamais
escritos, no juízo insuspeito de
Guimarães Rosa.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Desolação
Autor: Dyonélio Machado
Editora: Planeta
Quanto: R$ 29,90 (208 págs.)
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