São Paulo, sábado, 03 de setembro de 2005

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RODAPÉ

Afogados na areia

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

A militância política e a atividade psiquiátrica encobriram boa parte da importância da obra de Dyonélio Machado (1895-1985), resumindo-a à excelência reconhecida de "Os Ratos" (1935), romance em que Naziazeno, memorável pobre diabo de linhagem dostoiévskiana, foge ao cerco das horas que escoam, sem meios de resgatar uma dívida tão banal, quanto excruciante -a que paga o leite do filho doente.
Gaúcho da fronteira, nascido em Quaraí, divisa com o Uruguai, fez sua educação política e iniciação às letras em meio ao exercício sistemático e arbitrário da violência institucionalizada, sob pretexto de conter os esbirros da Revolução Federalista. Ainda menino, sentiu o impacto dos horrores -prisões sem justificativa, tortura, degolas- conduzidos pelo general João Francisco Pereira de Souza, a "Hiena do Cati".
O engajamento foi sua resposta pessoal, levando-o tanto à prisão política -com a eclosão malograda da Intentona, em 1935, já médico e dirigente local da Aliança Nacional Libertadora, Dyonélio cumpre dois anos preso, entre Porto Alegre e o Rio de Janeiro, onde convive com Graciliano Ramos- como ao parlamento, eleito deputado estadual pelo Partido Comunista, em 1947, e cassado em seguida, com a decretação da sua ilegalidade.
As circunstâncias de composição de "Desolação" (1944), um de seus 12 romances mais ou menos ignorados e em boa hora relançado pela Planeta, nascem deste contexto sombrio, o nosso. Parte de uma tetralogia, cujo elo mais próximo é "O Louco do Cati" (1942), incluindo ainda "Passos Perdidos" (1946) e o temporão "Nuanças" (1981), "Desolação" se passa numa semana de dezembro de 1935, quando um grupo de amigos tenta, aos trancos e barrancos, voltar a Porto Alegre, depois de uma excursão ao mar e a cena pública ressente-se do sobressalto da polícia política.
Se, em "O Louco do Cati", a partida para o passeio, em carro emprestado e com cobres contados -o calhambeque Borboleta, encostado pelo dono numa oficina mecânica- esbarrava na precariedade dos arranjos, corrida de obstáculos que diluía a alegria folgazã e, na chegada ao mar, derivava para a defecção forçada, com desdobramentos funestos, de dois companheiros, em "Desolação", a rotina subvertida da viagem de volta expressa-se bem na metáfora do labirinto invisível a céu aberto, figura precisa do clima de opressão -política, social, econômica- que, pouco a pouco, entranha nas almas dos excursionistas, deixando estragos, como aponta, com razão, Ana Paula Pacheco, que assina o posfácio.
Atravessando as dunas escaldantes, por caminhos instáveis, ao chiado constante das areias revoltas, Maneco, Luís e Leo erram de estação forçada em estação forçada, imobilizados e em busca de novos expedientes, ao sabor da fragilidade do Borboleta. A exemplo da narrativa picaresca, estradas, estalagens e postos de serviço são o espaço privilegiado do romance, não de escaramuças ridículas e reparadoras, mas do (des)encontro de opiniões e motivos de cada um, em que o grupo se esfacela, perdido em novos labirintos individuais.
Como em "Os Ratos", Dyonélio dá consistência quase física a este tempo infernal. Entretecendo o travamento histórico à penúria individual, faz com que, nos interstícios da viagem de volta, o que passaria por série infeliz de contratempos se adense em impasse crucial. De espectador quase passivo, quase inconsciente dos sinais dispersos do fechamento do horizonte político do país, Maneco passa a sentir-se vítima potencial das perseguições arbitrárias, sucumbindo, sob o peso de um acuamento que o autor, sabiamente, nunca precisa se imaginário ou fundado. Esta irresolução faz do seu um realismo superior, alçando "Desolação" ao patamar de "O Louco do Cati", um dos dez romances mais essenciais jamais escritos, no juízo insuspeito de Guimarães Rosa.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Desolação
    
Autor: Dyonélio Machado
Editora: Planeta
Quanto: R$ 29,90 (208 págs.)


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