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São Paulo, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003

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"UMA BARRAGEM CONTRA O PACÍFICO"

Duras afunda personagens no mangue da Indochina

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem leu "O Amante" (1984) reconhecerá algo de sua ambientação e enredo em "Uma Barragem contra o Pacífico" (1950).
Em ambos os romances, Marguerite Duras (1914-96) aproveitou livremente lembranças de sua própria infância e juventude na Indochina francesa.
O livro narra as desventuras de uma família de colonos franceses pobres -a mãe viúva, não nomeada, e seus filhos Joseph, 20, e Suzanne, 16- às voltas com terras imprestáveis para o cultivo.
A barragem do título foi uma idéia da mãe para evitar que suas terras e as dos camponeses vizinhos fossem invadidas pelo mar na época das cheias. Com seu entusiasmo, ela envolveu centenas de nativos na construção dos diques, que acabaram ruindo pela ação conjunta das águas e dos caranguejos.
Quando o romance começa, a barragem já ruiu. Trata-se, portanto, da história de uma derrota. Ou, antes, de várias derrotas.
Numa narrativa feita de avanços e recuos, conta-se o dia-a-dia cinzento da pequena família, pontuado ocasionalmente por surtos de esperança de evasão daquela realidade sem horizontes.
Como Joseph é demasiado inculto, selvagem e orgulhoso para abraçar alguma perspectiva de progresso, a mãe passa a apostar suas fichas nas possibilidades casamenteiras de Suzanne.
Esta é cortejada por um jovem milionário, M. Jo, que a família trata mal ao mesmo tempo em que usufrui de sua riqueza. Impossibilitado pelo pai de casar com Suzanne, M. Jo busca comprar a afeição da moça com presentes: uma vitrola, um vestido, um anel de diamante.
Estabelece-se um esquema que beira a cafetinagem. Todos se sentem incomodados, sobretudo o ciumento Joseph, mas buscam aproveitar a situação para sair de sua condição de penúria.
O diamante presenteado pelo namorado parece ser a chance para esse salto, e a família parte para a cidade a fim de vendê-lo. Começa aí praticamente uma outra história, com os três protagonistas imersos na complexa realidade urbana da colônia.
Embora a narração seja em terceira pessoa, seguimos mais de perto o drama íntimo de Suzanne, sua amargura precoce, sua sexualidade confusa, sua devoção meio incestuosa ao irmão.
Mas a força maior do livro está no trânsito entre o destino dessa família singular e o cenário natural e social em que ele se dá. As passagens que descrevem a vida miserável dos nativos, sobretudo das crianças subnutridas, são de uma força poética terrível, que prenuncia a roteirista e cineasta em que Duras se transformaria.
"Havia muita criança na planície. Era uma espécie de calamidade", diz a narradora.
Essa noção de calamidade inevitável, que vem em ciclos, como as colheitas e as inundações, impregna todo o livro e engolfa seus personagens. Com um notável talento narrativo, anterior à sua fase mais experimental, Duras enreda o leitor nesse mangue pestilento contra o qual nenhuma barragem dá jeito.


Uma Barragem contra o Pacífico
     Autora: Marguerite Duras Tradução: Eloísa Araújo Editora: Arx Quanto: R$ 46 (360 págs.)



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