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"UMA BARRAGEM CONTRA O PACÍFICO"
Duras afunda personagens no mangue da Indochina
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quem leu "O Amante" (1984)
reconhecerá algo de sua ambientação e enredo em "Uma Barragem contra o Pacífico" (1950).
Em ambos os romances, Marguerite Duras (1914-96) aproveitou livremente lembranças de sua
própria infância e juventude na
Indochina francesa.
O livro narra as desventuras de
uma família de colonos franceses
pobres -a mãe viúva, não nomeada, e seus filhos Joseph, 20, e
Suzanne, 16- às voltas com terras imprestáveis para o cultivo.
A barragem do título foi uma
idéia da mãe para evitar que suas
terras e as dos camponeses vizinhos fossem invadidas pelo mar
na época das cheias. Com seu entusiasmo, ela envolveu centenas
de nativos na construção dos diques, que acabaram ruindo pela
ação conjunta das águas e dos caranguejos.
Quando o romance começa, a
barragem já ruiu. Trata-se, portanto, da história de uma derrota.
Ou, antes, de várias derrotas.
Numa narrativa feita de avanços e recuos, conta-se o dia-a-dia
cinzento da pequena família, pontuado ocasionalmente por surtos
de esperança de evasão daquela
realidade sem horizontes.
Como Joseph é demasiado inculto, selvagem e orgulhoso para
abraçar alguma perspectiva de
progresso, a mãe passa a apostar
suas fichas nas possibilidades casamenteiras de Suzanne.
Esta é cortejada por um jovem
milionário, M. Jo, que a família
trata mal ao mesmo tempo em
que usufrui de sua riqueza. Impossibilitado pelo pai de casar
com Suzanne, M. Jo busca comprar a afeição da moça com presentes: uma vitrola, um vestido,
um anel de diamante.
Estabelece-se um esquema que
beira a cafetinagem. Todos se sentem incomodados, sobretudo o
ciumento Joseph, mas buscam
aproveitar a situação para sair de
sua condição de penúria.
O diamante presenteado pelo
namorado parece ser a chance para esse salto, e a família parte para
a cidade a fim de vendê-lo. Começa aí praticamente uma outra história, com os três protagonistas
imersos na complexa realidade
urbana da colônia.
Embora a narração seja em terceira pessoa, seguimos mais de
perto o drama íntimo de Suzanne,
sua amargura precoce, sua sexualidade confusa, sua devoção meio
incestuosa ao irmão.
Mas a força maior do livro está
no trânsito entre o destino dessa
família singular e o cenário natural e social em que ele se dá. As
passagens que descrevem a vida
miserável dos nativos, sobretudo
das crianças subnutridas, são de
uma força poética terrível, que
prenuncia a roteirista e cineasta
em que Duras se transformaria.
"Havia muita criança na planície. Era uma espécie de calamidade", diz a narradora.
Essa noção de calamidade inevitável, que vem em ciclos, como as
colheitas e as inundações, impregna todo o livro e engolfa seus
personagens. Com um notável talento narrativo, anterior à sua fase
mais experimental, Duras enreda
o leitor nesse mangue pestilento
contra o qual nenhuma barragem
dá jeito.
Uma Barragem contra o Pacífico
Autora: Marguerite Duras
Tradução: Eloísa Araújo
Editora: Arx
Quanto: R$ 46 (360 págs.)
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