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COMENTÁRIO
Para não entender "Timbalalaika"
JORGE FORBES
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Timbalalaika". Não são
muitos os filmes que exploram o fato de que uma vida
pode ser sustentada em uma só
palavra, e mais, uma palavra, de
preferência, incompreensível. Foi
assim com "Cidadão Kane" e seu
"Rosebud", que, além de ser o
enigma de Kane, questiona a todos que assistem ao filme. "O que
é "Rosebud'?", perguntam os aflitos, que pensam existir algo além
da palavra.
Assim também é com esse novo
filme "Jornada da Alma", título
mal ajustado para o português do
original "Soul Keeper" [Guardadora da Alma] (... de Jung).
O filme é atravessado por "Timbalalaika". "É o nome de uma
canção", explica imediatamente o
vendedor de compreensão, o
mesmo que acha que "Rosebud"
é botão de rosa. Sim, nome de
uma canção, mas sem significado,
embora cheio de sentido.
Bem-vindo a esse filme predestinado ao sucesso. Ele comoverá
as platéias -é uma aposta- por
encenar a febre recorrente de autoritarismo, neste caso representada por uma família arcaica e
moralista buscando tratamento
para uma filha -"louca de hospício"- em uma clínica igualmente arcaica e moralista, apesar de o
psiquiatra-chefe ser o grande
Bleuler, conceituador da esquizofrenia. A imagem do médico e a
do pai se confundem mais pela
postura do que pelos traços anatômicos.
Sabina Spielrein, a filha louca,
histérica -dirão depois- é arrancada dos pais por uma santa
freira, para ser jogada no inferno
da camisa-de-força dos que pensam: "Poder viajar a Marte, e que
lá não nascem crianças porque
marciano não faz amor". Bleuler
indica seu jovem assistente Jung,
já em contato com Freud, para
atender Sabina.
A jovem esbugalha o olho atrás
da cortina, surpresa, ao se deparar
com seu novo psiquiatra, fora da
série infindável de surdos.
Ele chega a achar Marte natural,
provocando nela a sensação
-uma vez que ele existia de verdade, era psiquiatra e falava em
Marte- de que talvez ela também existisse; "um ser humano",
como pediu para escreverem sobre seu túmulo.
"Timbalalaika", Sabina, que
pretendia se matar, escreve para
sua mãe. "Timbalalaika" pode
matar, como pode ressuscitar, como pode curar, como pode fazer
gozar.
"Jornada da Alma" é um filme
sobre o amor, sobre muitos amores: sobre o amor de Sabina, mulher; sobre o amor de Jung, descobrindo sensações em seu corpo;
sobre o amor do pai; sobre o amor
à filha, ao mestre, ao povo; sobre o
amor a uma psicanálise nascente
que deveu muito às mulheres:
Anna O., que inventou a "cura pela palavra", Sabina -a quem este
filme quer fazer justiça-, que ensinou a Jung e a Freud o além do
limite do amor e que há de se responsabilizar por ele quando o padrão é ultrapassado e o limite caduca.
A mulher de Jung é representada como mulher-mãe, enquanto
Sabina é mulher-desejo. Uma vigia, outra goza. Jung, ah!, Jung escreve a Freud: "Mestre, meu mestre querido, o que é isso?". À la
Fernando Pessoa.
Jung inspira Sabina a entrar na
faculdade de medicina: metáfora
para dizer que desejo também pode passar no vestibular e não só
protocolos engomados na alfaiataria dos conceitos da experiência
humana. O que era verdade em
1904, tempo em que se passa a história, continua verdadeiro um século depois.
Alguns seguem querendo saber
o que é "Rosebud" e o que é "Timbalalaika". Estes não entram na
dança de Sabina -cena representada pela rigidez de Bleuler no
baile do refeitório.
Vivemos a época angustiante do
"homem desbussolado", interessante para os inventores, desesperadora para os sequiosos de segurança, de confirmação do já sabido, das evidências.
Jung tropeça no desejo de Sabina, levanta, dá a volta por cima e
nos lega uma obra; Sabina tropeça
na rigidez moral, dá a volta por cima e nos lega um amor sem limite; Freud, ora, Freud, tropeça no
corpo inerte da anatomia cadavérica, levanta para inventar o melhor instrumento, a melhor bússola para o desejo humano até hoje proposta: a psicanálise. Freud
inventa o analista e, o analisando,
inventa um novo amor, difícil, intenso, sem piloto automático, que
exige presença e responsabilidade
singular, passo a passo.
Sabina, que no início vence a tirania da velha moral familiar e
psiquiátrica, ao final é vencida pela tirania de Hitler. Fica seu louco
desejo. Hitler morreu. A alma
continua sua jornada para quem,
e só para quem, puder não compreender "Timbalalaika".
Jorge Forbes é psicanalista e médico-psiquiatra. Preside o IPLA-Instituto da
Psicanálise Lacaniana e dirige o
www.projetoanalise.com.br. Autor de
"Você Quer o que Deseja?" (Best-Seller)
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