São Paulo, sexta-feira, 03 de dezembro de 2004

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COMENTÁRIO

Para não entender "Timbalalaika"

JORGE FORBES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Timbalalaika". Não são muitos os filmes que exploram o fato de que uma vida pode ser sustentada em uma só palavra, e mais, uma palavra, de preferência, incompreensível. Foi assim com "Cidadão Kane" e seu "Rosebud", que, além de ser o enigma de Kane, questiona a todos que assistem ao filme. "O que é "Rosebud'?", perguntam os aflitos, que pensam existir algo além da palavra.
Assim também é com esse novo filme "Jornada da Alma", título mal ajustado para o português do original "Soul Keeper" [Guardadora da Alma] (... de Jung).
O filme é atravessado por "Timbalalaika". "É o nome de uma canção", explica imediatamente o vendedor de compreensão, o mesmo que acha que "Rosebud" é botão de rosa. Sim, nome de uma canção, mas sem significado, embora cheio de sentido.
Bem-vindo a esse filme predestinado ao sucesso. Ele comoverá as platéias -é uma aposta- por encenar a febre recorrente de autoritarismo, neste caso representada por uma família arcaica e moralista buscando tratamento para uma filha -"louca de hospício"- em uma clínica igualmente arcaica e moralista, apesar de o psiquiatra-chefe ser o grande Bleuler, conceituador da esquizofrenia. A imagem do médico e a do pai se confundem mais pela postura do que pelos traços anatômicos.
Sabina Spielrein, a filha louca, histérica -dirão depois- é arrancada dos pais por uma santa freira, para ser jogada no inferno da camisa-de-força dos que pensam: "Poder viajar a Marte, e que lá não nascem crianças porque marciano não faz amor". Bleuler indica seu jovem assistente Jung, já em contato com Freud, para atender Sabina.
A jovem esbugalha o olho atrás da cortina, surpresa, ao se deparar com seu novo psiquiatra, fora da série infindável de surdos.
Ele chega a achar Marte natural, provocando nela a sensação -uma vez que ele existia de verdade, era psiquiatra e falava em Marte- de que talvez ela também existisse; "um ser humano", como pediu para escreverem sobre seu túmulo.
"Timbalalaika", Sabina, que pretendia se matar, escreve para sua mãe. "Timbalalaika" pode matar, como pode ressuscitar, como pode curar, como pode fazer gozar.
"Jornada da Alma" é um filme sobre o amor, sobre muitos amores: sobre o amor de Sabina, mulher; sobre o amor de Jung, descobrindo sensações em seu corpo; sobre o amor do pai; sobre o amor à filha, ao mestre, ao povo; sobre o amor a uma psicanálise nascente que deveu muito às mulheres: Anna O., que inventou a "cura pela palavra", Sabina -a quem este filme quer fazer justiça-, que ensinou a Jung e a Freud o além do limite do amor e que há de se responsabilizar por ele quando o padrão é ultrapassado e o limite caduca.
A mulher de Jung é representada como mulher-mãe, enquanto Sabina é mulher-desejo. Uma vigia, outra goza. Jung, ah!, Jung escreve a Freud: "Mestre, meu mestre querido, o que é isso?". À la Fernando Pessoa.
Jung inspira Sabina a entrar na faculdade de medicina: metáfora para dizer que desejo também pode passar no vestibular e não só protocolos engomados na alfaiataria dos conceitos da experiência humana. O que era verdade em 1904, tempo em que se passa a história, continua verdadeiro um século depois.
Alguns seguem querendo saber o que é "Rosebud" e o que é "Timbalalaika". Estes não entram na dança de Sabina -cena representada pela rigidez de Bleuler no baile do refeitório.
Vivemos a época angustiante do "homem desbussolado", interessante para os inventores, desesperadora para os sequiosos de segurança, de confirmação do já sabido, das evidências.
Jung tropeça no desejo de Sabina, levanta, dá a volta por cima e nos lega uma obra; Sabina tropeça na rigidez moral, dá a volta por cima e nos lega um amor sem limite; Freud, ora, Freud, tropeça no corpo inerte da anatomia cadavérica, levanta para inventar o melhor instrumento, a melhor bússola para o desejo humano até hoje proposta: a psicanálise. Freud inventa o analista e, o analisando, inventa um novo amor, difícil, intenso, sem piloto automático, que exige presença e responsabilidade singular, passo a passo.
Sabina, que no início vence a tirania da velha moral familiar e psiquiátrica, ao final é vencida pela tirania de Hitler. Fica seu louco desejo. Hitler morreu. A alma continua sua jornada para quem, e só para quem, puder não compreender "Timbalalaika".


Jorge Forbes é psicanalista e médico-psiquiatra. Preside o IPLA-Instituto da Psicanálise Lacaniana e dirige o www.projetoanalise.com.br. Autor de "Você Quer o que Deseja?" (Best-Seller)

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