São Paulo, quinta-feira, 03 de dezembro de 2009

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NINA HORTA

O assunto na falta de assunto


Quero ossobuco. Nada de porco light, salsicha light, frango light. A única coisa gorda no supermercado sou eu


BRANCO PODE ser a cor das noivas, simbolizar a pureza, mas para quem escreve todas as semanas ou todos os dias para um jornal sabe o que quer dizer o negro branco da total falta de assunto. Antigamente, abria-se um caderno ou punham-se folhas brancas, muitas, empilhadas bem certinho, lápis de pontas afiadas e canetas carinhosamente cheias de tinta.
Hoje, abre-se o word, passa-se logo para o e-mail, ou Ebay, ou Amazon, o que leva horas divertidas, e o tempo vai chegando mais perto, mais perto, e tem de sair e você já leu todos os livros novos, deu uma espiada nos antigos, destripou os jornais, saiu para jantar e nada deu matéria. Vamos ao trabalho. Arrumar gavetas, guardar livros, rasgar muito papel, até que não haja mais absolutamente nada no mundo que sirva de desculpa.
Quem sabe na TV? Com tantos programas de comida caio bem naquele tipo que odeio, você-é-aquilo-que-come, com uma inglesa com cara de fuinha expondo ao mundo a gordura de duas mulheres e mostrando que o que elas comem é caca. Que vão morrer. Mostra um fígado (plástico) podre porque tomam muita vodca e cerveja. E as submete, então, a um regime de tofu e verdes. Correm, correm muito com o cachorro. (Interessante nesses programas ingleses é que na hora de correr sempre tem o cachorro junto, já magro, mas parece que correr sem cachorro, para inglês, não vale.)
As duas louras, meio abobadas, mãe e filha, emagrecem um pouco, deixam de tomar os dois copos de vodca, copos mesmo, que bebiam vendo TV, mais algumas cervejas. As gorduchas sem-vergonha bem que merecem, mas é um terror. O prazer de comer é subjugado, a importância é se livrar das banhas nada estéticas e nada saudáveis. Até dariam assunto, esses programas, mas batidos, hoje em dia não se fala em outra coisa.
Quem sabe dar um pulo no empório Santa Luzia? Lá tem sempre novidade e nos feriados deve estar vazio. Famosas últimas palavras, nunca esteve tão cheio. Resolvo ficar na parte de comidinhas diferentes, compro chouriços espanhóis fininhos, deliciosos.
Mas o que mais me assusta é que, desacostumada de supermercados que ando, parece que entrei na casa da d.
Fuinha da TV. Vou pegar um iogurte e, confusa, não acho nenhum normal. São todos light. E os médicos me dizem que não paga a pena, no caso do iogurte. Diferença mínima. E os queijos? Estou atrás de queijo bem bom, um roquefort especial, onde estão os não light? As carnes são light, mas eu quero uma que seja rajada de gordura para ficar macia. Quero ossobuco.
Nada de porco light, salsicha light, frango light. A única coisa gorda no supermercado sou eu.
Por sinal, surgiu, enquanto eu estava lá, uma réplica da Geyse, a da faculdade com seu mini. E é interessante vê-la em outro ambiente que não a faculdade. O mercado para. É uma morenona luxuriante de corpo lindo vestida com uma minicamisola "evasée" de cetim cinza e saltos muito altos.
"Todos podem se vestir como quiserem", é a voz do povo na TV, nos jornais. Não sei, não.
Poder, pode, mas tem que ser light. O empório inteiro entrou em êxtase de curiosidade e vontade de olhar. Todo mundo, desde os comportados vendedores, torceram o pescoço, pararam por um bom tempo num misto de incredulidade, curiosidade, desejo e riso.Tal qual, mas sem agressões. A menina não era light, num mundo light.
Influenciada pela Espanha, que tem ótimos enlatados, me interesso por anchovas em lata, por pimentões e pelo grão-de-bico em vidros. Ah, lembrei de comprar uma língua defumada que há muito não como. (Tem causado susto, cada vez que se abre a geladeira ela mostra a língua para nós, feia que dói.) É, às vezes, os dias não dão matéria.

ninahorta@uol.com.br


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