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MEMÓRIA
Artie Shaw representou ápice da clarineta
ZUZA HOMEM DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se é ponto pacífico que um saxofone tenor é o símbolo do
jazz atual, na era do suingue dos
anos 30 e início dos 40, era uma
clarineta. Vertical, negra, da família das palhetas, de ampla tessitura, foi magistralmente executada
por dois "bandleaders" excepcionais e rivais: Benny Goodman,
apelidado rei do suingue, e Artie
Shaw (que morreu na última
quinta, dia 30 de dezembro), o
ícone mais charmoso da era. Assim era visto pelo sexo feminino,
inclusive duas de suas oito ex-mulheres, Lana Turner e Ava
Gardner. Nesse páreo, lavou a
égua. E na música?
Até hoje as duas correntes não
arredam posição. Ou se é Benny
ou Artie, originalmente Arthur
Arshawsky, o último e o mais longevo líder de big bands. Viveu até
os 94 anos.
Artie Shaw era inteligente, culto,
articulado, exigente, atraente, milionário, anti-segregacionista e
decidido. No auge da carreira, na
iminência de passar do estágio de
músico para o de celebridade, resolveu parar de estalo e saiu de cena como uma Cinderela no meio
do baile. Em 1939, no Café Rouge
do hotel Pennsylvania, em Nova
York, uma senhora pediu-lhe
uma rumba. "Minha senhora",
respondeu, "está no lugar errado". Abandonou o palco, reuniu
os músicos e foi direto: "Para
mim, chega". Sumiu no México,
fez esporádicas aparições, obteve
ainda mais sucesso em interpretações fulgurantes, liderou pequenos conjuntos e passou a escrever
muito mais do que tocar. Tornou-se um musico legendário.
Destacou-se como prodigioso
clarinetista desde maio de 1936
com o sucesso de uma inusitada
formação de clarineta, ritmo e um
quarteto de cordas. Em março de
1938, estreou na gravadora RCA
tendo de argumentar com o diretor ao escolher uma canção pouco
conhecida de Cole Porter, numa
levada suingada do arranjador
Jerry Gray, inteiramente diferente
da idéia abolerada do autor. Nessa
gravação, finalizando numa nota
agudíssima para arrematar o
"glissé" final, começam duas histórias: a de "Begin the Beguine" e
a do novo ídolo. Da noite para o
dia, milhões de discos foram vendidos e novos sucessos retumbantes com Artie Shaw e sua orquestra passaram a ser ouvidos por
décadas: "Frenesi", "April in Paris", "Stardust"...
Até mesmo no Brasil, na época
áurea dos bailes animados por big
bands, a preferência por Artie ou
Benny provocou uma rivalidade
entre duas orquestras, a de Severino Araujo e a de Zaccarias. No
jazz, essa divisão se mantém acesa, cada grupo tem fundadas razões. Artie Shaw é mais cool, mais
musical, mais profundo, com um
fraseado jazzístico sutil; Benny
sempre foi mais hot com sua técnica prodigiosa, frases e combinações empolgantes em acabamento impecáveis. Ambos foram líderes rigorosíssimos, promoveram
a integração de negros em suas
bandas brancas. Benny foi odiado
por vários de seus músicos, Artie
era amado pelos seus.
A comparação pode ser resumida em um diálogo em um almoço.
Benny insistia em falar sobre outros clarinetistas quando Artie o
interrompeu: "Mas afinal por que
falarmos tanto de clarinetistas?".
"Mas não é esse nosso instrumento?"
Artie arrematou: "Benny, você
toca clarineta, eu toco música".
Com essa frase, Artie Shaw define a diferença, justificando ainda
sua admiração por músicos como
o cool saxofonista Lester Young. E
dá a pista para a vida que decidiu
levar, escrevendo mais que tocando. Sua missão como músico estava cumprida.
Zuza Homem de Mello é musicólogo e
crítico musical
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