São Paulo, terça-feira, 04 de janeiro de 2005

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MEMÓRIA

Artie Shaw representou ápice da clarineta

ZUZA HOMEM DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se é ponto pacífico que um saxofone tenor é o símbolo do jazz atual, na era do suingue dos anos 30 e início dos 40, era uma clarineta. Vertical, negra, da família das palhetas, de ampla tessitura, foi magistralmente executada por dois "bandleaders" excepcionais e rivais: Benny Goodman, apelidado rei do suingue, e Artie Shaw (que morreu na última quinta, dia 30 de dezembro), o ícone mais charmoso da era. Assim era visto pelo sexo feminino, inclusive duas de suas oito ex-mulheres, Lana Turner e Ava Gardner. Nesse páreo, lavou a égua. E na música?
Até hoje as duas correntes não arredam posição. Ou se é Benny ou Artie, originalmente Arthur Arshawsky, o último e o mais longevo líder de big bands. Viveu até os 94 anos.
Artie Shaw era inteligente, culto, articulado, exigente, atraente, milionário, anti-segregacionista e decidido. No auge da carreira, na iminência de passar do estágio de músico para o de celebridade, resolveu parar de estalo e saiu de cena como uma Cinderela no meio do baile. Em 1939, no Café Rouge do hotel Pennsylvania, em Nova York, uma senhora pediu-lhe uma rumba. "Minha senhora", respondeu, "está no lugar errado". Abandonou o palco, reuniu os músicos e foi direto: "Para mim, chega". Sumiu no México, fez esporádicas aparições, obteve ainda mais sucesso em interpretações fulgurantes, liderou pequenos conjuntos e passou a escrever muito mais do que tocar. Tornou-se um musico legendário.
Destacou-se como prodigioso clarinetista desde maio de 1936 com o sucesso de uma inusitada formação de clarineta, ritmo e um quarteto de cordas. Em março de 1938, estreou na gravadora RCA tendo de argumentar com o diretor ao escolher uma canção pouco conhecida de Cole Porter, numa levada suingada do arranjador Jerry Gray, inteiramente diferente da idéia abolerada do autor. Nessa gravação, finalizando numa nota agudíssima para arrematar o "glissé" final, começam duas histórias: a de "Begin the Beguine" e a do novo ídolo. Da noite para o dia, milhões de discos foram vendidos e novos sucessos retumbantes com Artie Shaw e sua orquestra passaram a ser ouvidos por décadas: "Frenesi", "April in Paris", "Stardust"...
Até mesmo no Brasil, na época áurea dos bailes animados por big bands, a preferência por Artie ou Benny provocou uma rivalidade entre duas orquestras, a de Severino Araujo e a de Zaccarias. No jazz, essa divisão se mantém acesa, cada grupo tem fundadas razões. Artie Shaw é mais cool, mais musical, mais profundo, com um fraseado jazzístico sutil; Benny sempre foi mais hot com sua técnica prodigiosa, frases e combinações empolgantes em acabamento impecáveis. Ambos foram líderes rigorosíssimos, promoveram a integração de negros em suas bandas brancas. Benny foi odiado por vários de seus músicos, Artie era amado pelos seus.
A comparação pode ser resumida em um diálogo em um almoço. Benny insistia em falar sobre outros clarinetistas quando Artie o interrompeu: "Mas afinal por que falarmos tanto de clarinetistas?".
"Mas não é esse nosso instrumento?"
Artie arrematou: "Benny, você toca clarineta, eu toco música".
Com essa frase, Artie Shaw define a diferença, justificando ainda sua admiração por músicos como o cool saxofonista Lester Young. E dá a pista para a vida que decidiu levar, escrevendo mais que tocando. Sua missão como músico estava cumprida.


Zuza Homem de Mello é musicólogo e crítico musical


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