|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ROMANCE
Tyler desmonta relações
MARCELO PEN
especial para a Folha
Uma estranha
metamorfose acomete alguns autores estrangeiros.
Eles são tidos como
muito bons, acima
da média em seu país de origem.
Mas, ao chegarem aqui, perdem a
graça. Não entendemos como
despertaram tanta admiração.
Tome-se o caso do romancista
Kazuo Ishiguro. Quem leu alguma das versões brasileiras de suas
obras sabe por que é elogiado pela
crítica anglo-saxã, por que ganhou o Booker Prize?
Ou J.D. Salinger, um dos maiores nomes da literatura norte-americana. Há quem tenha sido
apresentado a "O Apanhador no
Campo de Centeio" na tradução e
descoberto por que é tão superior
a, digamos, "Meu Pé de Laranja-lima"?
A leitura de "O Jogo da Vida",
da escritora Anne Tyler, ajuda-nos a entender o fenômeno. Tyler
é membro da Academia Norte-americana de Letras, ganhadora
do Pulitzer por "Lições de Vida",
autora de diversos romances.
Um deles, "O Turista Acidental", foi adaptado com sucesso para o cinema. Mas, ao examinarmos "O Jogo da Vida", sentimos
um imediato estranhamento. As
pessoas "relatam" seus planos,
"endireitam a postura", "olham
para além" de outra, "estudam"
suas feições etc, etc.
Outros exemplos: "seu mau hálito indicava que sua respiração
era praticamente inflamável"; "isso me ofereceu uma idéia de como é estar velho"; "soltei um grunhido, mas Martine não emitiu
nenhum som".
Há mais, é claro. Muito mais. A
história vai sendo interrompida
por essas pedras no meio do caminho, embaciada por esses desarranjos verbais.
E não estamos no terreno do estranhamento propositado, da invenção linguística de efeitos estéticos, que estilhaçam a narrativa.
O enredo de "O Jogo da Vida" é
simples, linear, fluente: um dos
trunfos do livro. Barnaby Gaitlin é
um ex-delinquente juvenil que,
aos 30 anos, procura se ajustar na
sociedade. Trabalha na empresa
Braços de Aluguel, que presta serviços ocasionais para idosos e
portadores de deficiências físicas.
Gaitlin revelou-se um desapontamento para sua família, tradicional e semichique. Casou-se, separou-se, tem uma filha. A ex-mulher o despreza, a menina tem
vergonha dele. Quando conhece a
bancária Sophia, o rapaz acredita
que sua vida poderá mudar, mas
outras surpresas o aguardam.
Contando assim, parece igual a
dezenas de outros relatos. Mas o
grande mérito de Tyler está na
forma como ela desmonta essas
relações.
Como, com inteligência e ironia, expõe as mesquinharias, as
crueldades, além dos breves momentos de epifania e de altruísmo
da classe média norte-americana.
Há também o lado trágico, patético, da vida, representado pelos
clientes de Gaitlin. São velhos para quem ninguém mais tem tempo. As manchas senis incomodam, as rabugices espantam, a
morte próxima assusta.
Mesmo nos momentos extremos, porém, o tom permanece
menor. Tyler refreia os grandes
arroubos, as emoções caudalosas.
É num registro miúdo e muitas
vezes bem-humorado que ela tece
sua crônica dos desajustes: Gaitlin
versus a família, os idosos versus a
sociedade, Sophia versus Gaitlin.
Trata-se de qualidades ocultas
na barafunda tradutória. Podemos até mesmo percebê-las, se
nos acostumarmos com a esquisitice vocabular.
O mesmo ocorre, em níveis diferentes, nos casos de Ishiguro e
de Salinger. Intuímo-lhes o valor
como se vislumbrássemos a luz
clara do original tentando vencer
a barreira da língua. Merecem(os)
melhor sorte.
Avaliação:
Livro: O Jogo da Vida
Autor: Anne Tyler
Tradutor: A. B. Pinheiro de Lemos
Editora: Mandarim
Quanto: R$ 34,50 (321 págs.)
Texto Anterior: Livro - Lançamentos: Branson perde virgindade em ritmo hedonista Próximo Texto: Design: A máquina busca o belo Índice
|