São Paulo, sábado, 04 de março de 2000


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ROMANCE
Tyler desmonta relações

MARCELO PEN
especial para a Folha


Uma estranha metamorfose acomete alguns autores estrangeiros. Eles são tidos como muito bons, acima da média em seu país de origem. Mas, ao chegarem aqui, perdem a graça. Não entendemos como despertaram tanta admiração.
Tome-se o caso do romancista Kazuo Ishiguro. Quem leu alguma das versões brasileiras de suas obras sabe por que é elogiado pela crítica anglo-saxã, por que ganhou o Booker Prize?
Ou J.D. Salinger, um dos maiores nomes da literatura norte-americana. Há quem tenha sido apresentado a "O Apanhador no Campo de Centeio" na tradução e descoberto por que é tão superior a, digamos, "Meu Pé de Laranja-lima"?
A leitura de "O Jogo da Vida", da escritora Anne Tyler, ajuda-nos a entender o fenômeno. Tyler é membro da Academia Norte-americana de Letras, ganhadora do Pulitzer por "Lições de Vida", autora de diversos romances.
Um deles, "O Turista Acidental", foi adaptado com sucesso para o cinema. Mas, ao examinarmos "O Jogo da Vida", sentimos um imediato estranhamento. As pessoas "relatam" seus planos, "endireitam a postura", "olham para além" de outra, "estudam" suas feições etc, etc.
Outros exemplos: "seu mau hálito indicava que sua respiração era praticamente inflamável"; "isso me ofereceu uma idéia de como é estar velho"; "soltei um grunhido, mas Martine não emitiu nenhum som".
Há mais, é claro. Muito mais. A história vai sendo interrompida por essas pedras no meio do caminho, embaciada por esses desarranjos verbais.
E não estamos no terreno do estranhamento propositado, da invenção linguística de efeitos estéticos, que estilhaçam a narrativa.
O enredo de "O Jogo da Vida" é simples, linear, fluente: um dos trunfos do livro. Barnaby Gaitlin é um ex-delinquente juvenil que, aos 30 anos, procura se ajustar na sociedade. Trabalha na empresa Braços de Aluguel, que presta serviços ocasionais para idosos e portadores de deficiências físicas.
Gaitlin revelou-se um desapontamento para sua família, tradicional e semichique. Casou-se, separou-se, tem uma filha. A ex-mulher o despreza, a menina tem vergonha dele. Quando conhece a bancária Sophia, o rapaz acredita que sua vida poderá mudar, mas outras surpresas o aguardam.
Contando assim, parece igual a dezenas de outros relatos. Mas o grande mérito de Tyler está na forma como ela desmonta essas relações.
Como, com inteligência e ironia, expõe as mesquinharias, as crueldades, além dos breves momentos de epifania e de altruísmo da classe média norte-americana.
Há também o lado trágico, patético, da vida, representado pelos clientes de Gaitlin. São velhos para quem ninguém mais tem tempo. As manchas senis incomodam, as rabugices espantam, a morte próxima assusta.
Mesmo nos momentos extremos, porém, o tom permanece menor. Tyler refreia os grandes arroubos, as emoções caudalosas. É num registro miúdo e muitas vezes bem-humorado que ela tece sua crônica dos desajustes: Gaitlin versus a família, os idosos versus a sociedade, Sophia versus Gaitlin.
Trata-se de qualidades ocultas na barafunda tradutória. Podemos até mesmo percebê-las, se nos acostumarmos com a esquisitice vocabular.
O mesmo ocorre, em níveis diferentes, nos casos de Ishiguro e de Salinger. Intuímo-lhes o valor como se vislumbrássemos a luz clara do original tentando vencer a barreira da língua. Merecem(os) melhor sorte.


Avaliação:   


Livro: O Jogo da Vida Autor: Anne Tyler Tradutor: A. B. Pinheiro de Lemos Editora: Mandarim Quanto: R$ 34,50 (321 págs.)

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