|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
A história real
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Dave Eggers,
29, autor do mais
novo fenômeno
de mídia dos Estados Unidos
-"A Heartbreaking Work of Staggering Genius" ("Uma Obra Pungente de
um Gênio Assombroso")-
cresceu num subúrbio rico de
Chicago, numa família remediada. Aos 21 anos, ao perder
pai e mãe, ambos de câncer e
num intervalo de cinco semanas, viu-se de repente com a
missão de criar sozinho o irmão de oito anos.
A biografia desse "novo escritor assombrosamente talentoso" -nas palavras da influente crítica literária do "The
New York Times", Michiko
Kakutani, que assinou o primeiro dos três artigos sobre o
autor publicados pelo jornal
em apenas três semanas, culminando com a capa do "Book
Review"- seria secundária se
não fosse a essência da sua obra
de estréia.
Eggers não é um desconhecido da mídia ou do mundo pop.
Recebeu um adiantamento de
US$ 100 mil para escrever o livro. É um típico representante
da Geração X, que chegou à
idade adulta com o advento da
Internet. Entre a morte dos
pais e sua revelação como escritor, fundou uma revista cult,
com um grupo de amigos, em
San Francisco.
A bimestral "Might" foi uma
espécie de "Casseta e Planeta"
da Geração X. Seu "programa"
era desmistificar e ironizar a vida americana, da universidade
ao trabalho, passando pela publicidade e a mídia. O projeto
chegou ao ápice ao forjar um
furo: a notícia exclusiva (e falsa) da morte de um ex-astro
mirim da TV americana que,
para sair do ostracismo, concordou em participar da impostura.
No número especial da "The
New Yorker" dedicado aos expoentes da nova geração (18 de
outubro de 99), Eggers aparece
não só com um trecho de seu livro à época ainda inédito, mas
numa foto, ao lado de sua nova
equipe editorial, e num artigo
sobre sua mais recente empreitada no campo do humor: a revista "McSweeney's", uma publicação caseira cujo espírito
-em geral, engraçadíssimo-
deve bastante à precursora
"Might" (o texto pode ser consultado na Internet:
www.mcsweeneys.net).
A auto-ironia -que no livro
às vezes se torna um tanto ginasiana- é a marca registrada
de Eggers, sob influência de um
dos mais notáveis representantes da nova literatura americana: David Foster Wallace.
É a auto-ironia a maior responsável pela ambiguidade do
texto, a começar pelo título.
Graças a ela, tudo parece ter sido previsto e antecipado pela
autoconsciência exacerbada do
autor, esvaziando qualquer
possibilidade de crítica.
É dessa ironia que é feito o
prefácio e os esclarecimentos
que precedem o relato autobiográfico. Aos que eventualmente poderão ficar incomodados
com o clichê "baseado numa
história real" estampado na capa do livro (um oportunismo
que garante hoje, apesar de toda a auto-ironia, tanto as graças da crítica quanto as do mercado), o autor propõe: "Façam
o que autores e leitores têm feito desde o começo dos tempos:
finjam que é ficção".
Terapia por escrito
Seria simples se fosse tão fácil. Mas, às vezes, é preferível
correr o risco de pecar pelo
mau humor a se ver colaborando inconsequentemente com
as imposturas do momento
numa espécie de cinismo alegre.
Embora toda ficção seja em
última análise "baseada numa
história real" (sob o filtro da
imaginação), seria no mínimo
grotesco reduzir as obras de
Kafka ou Thomas Bernhard, só
para citar dois dos maiores escritores do século, a expressões
das gerações desses autores.
Ou louvá-las como terapias catárticas, em que tudo pode ser
justificado pela experiência trágica dos autores.
O "The New York Times"
chegou a dizer que as eventuais
pretensões experimentais de
Eggers (seu prefácio auto-irônico, por exemplo) são na realidade "parte da sensibilidade
do autor, táticas de sua defesa
de sobrevivência" diante do
caos da infância e da perda dos
pais: "Ele escreveu como um
substituto de uma ajuda psiquiátrica".
No fundo, "A Heartbreaking
Work of a Staggering Genius" é
não só a expressão da geração
do autor, recheada de referências pop, mas o relato da vida
de um rapaz que deu a volta
por cima, o que o aproxima dos
livros de auto-ajuda.
Pode ser "pungente", pode
ser narrado com "emoção genuína", mas é preciso manter a
dimensão das coisas. Literatura
é artifício e invenção. Não é a
"história real" que a faz mais
verdadeira e justificada. Por
outro lado, e ao contrário do
que pretende o autor, não basta
fingir que é ficção para fazer o
que grandes autores vêm fazendo desde os tempos imemoriais.
Não é preciso ir tão longe para saber que houve um tempo
em que se esperava mais da literatura além de relatar a realidade com estilo, graça e emoção.
Avaliação:
Livro: A Heartbreaking Work of
Staggering Genius
Autor: Dave Eggers
Editora: Simon and Schuster
Quanto: US$ 23 (376 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com
ou www.bn.com
Texto Anterior: Design: A máquina busca o belo Próximo Texto: Moda: Galliano faz desfile alegórico em Paris Índice
|