São Paulo, sábado, 04 de março de 2000


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RESENHA DA SEMANA
A história real

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Dave Eggers, 29, autor do mais novo fenômeno de mídia dos Estados Unidos -"A Heartbreaking Work of Staggering Genius" ("Uma Obra Pungente de um Gênio Assombroso")- cresceu num subúrbio rico de Chicago, numa família remediada. Aos 21 anos, ao perder pai e mãe, ambos de câncer e num intervalo de cinco semanas, viu-se de repente com a missão de criar sozinho o irmão de oito anos.
A biografia desse "novo escritor assombrosamente talentoso" -nas palavras da influente crítica literária do "The New York Times", Michiko Kakutani, que assinou o primeiro dos três artigos sobre o autor publicados pelo jornal em apenas três semanas, culminando com a capa do "Book Review"- seria secundária se não fosse a essência da sua obra de estréia.
Eggers não é um desconhecido da mídia ou do mundo pop. Recebeu um adiantamento de US$ 100 mil para escrever o livro. É um típico representante da Geração X, que chegou à idade adulta com o advento da Internet. Entre a morte dos pais e sua revelação como escritor, fundou uma revista cult, com um grupo de amigos, em San Francisco.
A bimestral "Might" foi uma espécie de "Casseta e Planeta" da Geração X. Seu "programa" era desmistificar e ironizar a vida americana, da universidade ao trabalho, passando pela publicidade e a mídia. O projeto chegou ao ápice ao forjar um furo: a notícia exclusiva (e falsa) da morte de um ex-astro mirim da TV americana que, para sair do ostracismo, concordou em participar da impostura.
No número especial da "The New Yorker" dedicado aos expoentes da nova geração (18 de outubro de 99), Eggers aparece não só com um trecho de seu livro à época ainda inédito, mas numa foto, ao lado de sua nova equipe editorial, e num artigo sobre sua mais recente empreitada no campo do humor: a revista "McSweeney's", uma publicação caseira cujo espírito -em geral, engraçadíssimo- deve bastante à precursora "Might" (o texto pode ser consultado na Internet: www.mcsweeneys.net).
A auto-ironia -que no livro às vezes se torna um tanto ginasiana- é a marca registrada de Eggers, sob influência de um dos mais notáveis representantes da nova literatura americana: David Foster Wallace.
É a auto-ironia a maior responsável pela ambiguidade do texto, a começar pelo título. Graças a ela, tudo parece ter sido previsto e antecipado pela autoconsciência exacerbada do autor, esvaziando qualquer possibilidade de crítica.
É dessa ironia que é feito o prefácio e os esclarecimentos que precedem o relato autobiográfico. Aos que eventualmente poderão ficar incomodados com o clichê "baseado numa história real" estampado na capa do livro (um oportunismo que garante hoje, apesar de toda a auto-ironia, tanto as graças da crítica quanto as do mercado), o autor propõe: "Façam o que autores e leitores têm feito desde o começo dos tempos: finjam que é ficção".


Terapia por escrito
Seria simples se fosse tão fácil. Mas, às vezes, é preferível correr o risco de pecar pelo mau humor a se ver colaborando inconsequentemente com as imposturas do momento numa espécie de cinismo alegre.
Embora toda ficção seja em última análise "baseada numa história real" (sob o filtro da imaginação), seria no mínimo grotesco reduzir as obras de Kafka ou Thomas Bernhard, só para citar dois dos maiores escritores do século, a expressões das gerações desses autores. Ou louvá-las como terapias catárticas, em que tudo pode ser justificado pela experiência trágica dos autores.
O "The New York Times" chegou a dizer que as eventuais pretensões experimentais de Eggers (seu prefácio auto-irônico, por exemplo) são na realidade "parte da sensibilidade do autor, táticas de sua defesa de sobrevivência" diante do caos da infância e da perda dos pais: "Ele escreveu como um substituto de uma ajuda psiquiátrica".
No fundo, "A Heartbreaking Work of a Staggering Genius" é não só a expressão da geração do autor, recheada de referências pop, mas o relato da vida de um rapaz que deu a volta por cima, o que o aproxima dos livros de auto-ajuda.
Pode ser "pungente", pode ser narrado com "emoção genuína", mas é preciso manter a dimensão das coisas. Literatura é artifício e invenção. Não é a "história real" que a faz mais verdadeira e justificada. Por outro lado, e ao contrário do que pretende o autor, não basta fingir que é ficção para fazer o que grandes autores vêm fazendo desde os tempos imemoriais.
Não é preciso ir tão longe para saber que houve um tempo em que se esperava mais da literatura além de relatar a realidade com estilo, graça e emoção.


Avaliação:   


Livro: A Heartbreaking Work of Staggering Genius Autor: Dave Eggers Editora: Simon and Schuster Quanto: US$ 23 (376 págs.) Onde encontrar: www.amazon.com ou www.bn.com


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