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Guerra ainda tortura sobreviventes
65 anos após o fim do combate, alemães que presenciaram o colapso do país resistem a se expor com medo de represália
Complexidade de causas do conflito e receio de serem mal-interpretados são argumentos dos que hesitam em contar experiências
DA REPORTAGEM LOCAL
Aos 87 anos, a senhora R.F.
mantém o aspecto que se presume de uma alemã descendente de nobres franceses, como ela -elegante, sóbria e culta. Ao ouvir o usual "a sra. está
ótima", de pronto responde: "É
só por fora".
Por dentro ainda lhe assombram as imagens da guerra. Em
Dusseldorf, norte da Alemanha, onde vivia com os pais,
R.F. presenciou do início ao fim
o conflito mais sangrento da
história (1939-1945). Mudou-se para o Brasil em 1951.
Antes do início da guerra, em
1934, ela tinha 12 anos e, de vestido azul e branco, foi com a escola saudar Hitler, à época já o
líder alemão, num desfile. "A
professora disse para gritarmos
bem alto "heil" [a saudação nazista, algo como "salve", "viva"
ou "ave"] quando ele passasse",
conta a sra. R. à Folha. Do carro
aberto, o "führer" respondeu
aos gritos com um olhar. "Ele
se virou e deu um sorriso, seus
olhos tinham um brilho impressionante", lembra.
Ao chegar em casa, o pai, que
lutara na Primeira Guerra e era
contrário ao nazismo, a repreendeu pelo relato. A família,
conta ela, foi monitorada pela
Gestapo até o fim do regime, o
que não impediu que o pai ajudasse um amigo judeu a escapar do país na Segunda Guerra.
R.F. era secretária de uma
empresa de navegação no rio
Reno. Vivia com os pais num
apartamento de um prédio de
três andares.
Perdeu parentes no conflito.
Durante a conversa, ela reproduz várias vezes o som dos tapetes de bombas que ouvia/
sentia escondida nos abrigos
subterrâneos. Lembra de pelo
menos três ocasiões em que, na
superfície, escapou de rajadas
de aviões aliados.
Em abril de 1945, com a
guerra decidida, ouviu pelo rádio Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, dizer que
voltara do bunker do "führer" e
que nunca o vira tão confiante
na vitória. "Eu quis jogar o aparelho na parede, mas era do vizinho, que não deixou."
Também pelo rádio escutou
o prefeito de Dusseldorf anunciar que não poderia garantir a
vida dos habitantes e que iria se
render, instando todos a fugir.
R.F. ficou. Primeiro os britânicos ocuparam a cidade, depois os americanos. Ela trabalhou nos mutirões de reconstrução. Com um martelo, tinha
de quebrar o concreto das ruínas dos prédios para reaproveitar os tijolos intactos.
Detesta ingleses, americanos
e russos, mas não franceses.
Tem pena dos judeus. E uma
posição dúbia sobre Hitler.
Avalia que ele foi "instrumento
do diabo", e atribui ao líder judeu Chaim Weizmann corresponsabilidade pelo holocausto,
"por ele ter exigido àquela altura um Estado judeu, quando o
governo alemão aceitara que
eles deixassem o país".
A sra. R.F. pediu para aparecer assim, abreviada, por medo.
"De alguém vir aqui em minha
casa. Tem ainda gente de Hitler, gente de Moscou..."
Klaus Giese tem 83 anos e
fantasmas semelhantes. Tudo
que sabemos é que nasceu em
Breslau, quando a cidade era
alemã -hoje é polonesa e se
chama Wroclaw-; que em
1945 tinha 18 anos e estava na
fronteira com a então Checoslováquia; e que vive no Brasil
desde 1992.
Deduz-se que seu braço esquerdo penso seja sequela da
guerra. Mas, no encontro que
teve com a reportagem, ele se
negou a contar sua vida.
"Não estamos falando sobre
Montgomery Clift ou Marilyn
Monroe. Há aspectos políticos,
religiosos e culturais envolvidos. Quem começou a guerra?
Como? Quem tinha culpa de
quê? Qualquer coisa que eu diga pode ser mal-interpretada."
Giese chega a embargar a voz
e lacrimejar. "Eu tinha de 17
para 18 anos e para mim é como se fosse ontem."
Mônica Vilela (sobrenome
de solteira Huisel), 67 anos no
sábado, tinha apenas 2 anos em
1945. Sua família vivia em
Stuttgart, mas durante a guerra
mulheres e crianças foram evacuadas para a aldeia de Bopfingen. O pai combateu e foi feito
prisioneiro soviético.
Lembra que tinha quatro
anos quando ele voltou para casa. Lembra que brincava nas
ruínas de Stuttgart, para onde a
família voltou quando a guerra
acabou. E também recorda nitidamente do que a mãe contava. "Os americanos entraram
na aldeia com blindados, as
pessoas ficavam apavoradas,
muitas viam negros pela primeira vez na vida."
Antes de vir para o Brasil, em
1971, participou da reconstrução do país. "O povo arregaçou
as mangas e tinha uma educação e uma cultura muito fortes.
Lembro que pouco depois do
fim da guerra já havia concertos de música."(FABIO VICTOR)
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