São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2010

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Guerra ainda tortura sobreviventes

65 anos após o fim do combate, alemães que presenciaram o colapso do país resistem a se expor com medo de represália

Complexidade de causas do conflito e receio de serem mal-interpretados são argumentos dos que hesitam em contar experiências

DA REPORTAGEM LOCAL

Aos 87 anos, a senhora R.F. mantém o aspecto que se presume de uma alemã descendente de nobres franceses, como ela -elegante, sóbria e culta. Ao ouvir o usual "a sra. está ótima", de pronto responde: "É só por fora".
Por dentro ainda lhe assombram as imagens da guerra. Em Dusseldorf, norte da Alemanha, onde vivia com os pais, R.F. presenciou do início ao fim o conflito mais sangrento da história (1939-1945). Mudou-se para o Brasil em 1951.
Antes do início da guerra, em 1934, ela tinha 12 anos e, de vestido azul e branco, foi com a escola saudar Hitler, à época já o líder alemão, num desfile. "A professora disse para gritarmos bem alto "heil" [a saudação nazista, algo como "salve", "viva" ou "ave"] quando ele passasse", conta a sra. R. à Folha. Do carro aberto, o "führer" respondeu aos gritos com um olhar. "Ele se virou e deu um sorriso, seus olhos tinham um brilho impressionante", lembra.
Ao chegar em casa, o pai, que lutara na Primeira Guerra e era contrário ao nazismo, a repreendeu pelo relato. A família, conta ela, foi monitorada pela Gestapo até o fim do regime, o que não impediu que o pai ajudasse um amigo judeu a escapar do país na Segunda Guerra.
R.F. era secretária de uma empresa de navegação no rio Reno. Vivia com os pais num apartamento de um prédio de três andares.
Perdeu parentes no conflito. Durante a conversa, ela reproduz várias vezes o som dos tapetes de bombas que ouvia/ sentia escondida nos abrigos subterrâneos. Lembra de pelo menos três ocasiões em que, na superfície, escapou de rajadas de aviões aliados.
Em abril de 1945, com a guerra decidida, ouviu pelo rádio Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, dizer que voltara do bunker do "führer" e que nunca o vira tão confiante na vitória. "Eu quis jogar o aparelho na parede, mas era do vizinho, que não deixou."
Também pelo rádio escutou o prefeito de Dusseldorf anunciar que não poderia garantir a vida dos habitantes e que iria se render, instando todos a fugir.
R.F. ficou. Primeiro os britânicos ocuparam a cidade, depois os americanos. Ela trabalhou nos mutirões de reconstrução. Com um martelo, tinha de quebrar o concreto das ruínas dos prédios para reaproveitar os tijolos intactos.
Detesta ingleses, americanos e russos, mas não franceses. Tem pena dos judeus. E uma posição dúbia sobre Hitler. Avalia que ele foi "instrumento do diabo", e atribui ao líder judeu Chaim Weizmann corresponsabilidade pelo holocausto, "por ele ter exigido àquela altura um Estado judeu, quando o governo alemão aceitara que eles deixassem o país".
A sra. R.F. pediu para aparecer assim, abreviada, por medo. "De alguém vir aqui em minha casa. Tem ainda gente de Hitler, gente de Moscou..."
Klaus Giese tem 83 anos e fantasmas semelhantes. Tudo que sabemos é que nasceu em Breslau, quando a cidade era alemã -hoje é polonesa e se chama Wroclaw-; que em 1945 tinha 18 anos e estava na fronteira com a então Checoslováquia; e que vive no Brasil desde 1992.
Deduz-se que seu braço esquerdo penso seja sequela da guerra. Mas, no encontro que teve com a reportagem, ele se negou a contar sua vida.
"Não estamos falando sobre Montgomery Clift ou Marilyn Monroe. Há aspectos políticos, religiosos e culturais envolvidos. Quem começou a guerra? Como? Quem tinha culpa de quê? Qualquer coisa que eu diga pode ser mal-interpretada."
Giese chega a embargar a voz e lacrimejar. "Eu tinha de 17 para 18 anos e para mim é como se fosse ontem."
Mônica Vilela (sobrenome de solteira Huisel), 67 anos no sábado, tinha apenas 2 anos em 1945. Sua família vivia em Stuttgart, mas durante a guerra mulheres e crianças foram evacuadas para a aldeia de Bopfingen. O pai combateu e foi feito prisioneiro soviético.
Lembra que tinha quatro anos quando ele voltou para casa. Lembra que brincava nas ruínas de Stuttgart, para onde a família voltou quando a guerra acabou. E também recorda nitidamente do que a mãe contava. "Os americanos entraram na aldeia com blindados, as pessoas ficavam apavoradas, muitas viam negros pela primeira vez na vida."
Antes de vir para o Brasil, em 1971, participou da reconstrução do país. "O povo arregaçou as mangas e tinha uma educação e uma cultura muito fortes. Lembro que pouco depois do fim da guerra já havia concertos de música."(FABIO VICTOR)


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