São Paulo, quinta-feira, 04 de maio de 2006

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NINA HORTA

Como pintar, bordar, escrever e cozinhar?

Continuando a ler sobre Virginia Woolf, tenho me metido por caminhos de modernismo e subjetividade. E não é que me caiu do céu um livro? "Among the Bohemians: Experiments in Living 1930-1939". A autora, Virginia Nicholson, é neta de Vanessa Bell; logo, sobrinha-neta de Virginia Woolf.
O livro trata das pequenas coisas, especificamente das trivialidades do cotidiano, dos hábitos dos artistas nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, uma fatia da sociedade bem afastada da sociedade britânica convencional, uma geração remodelando a domesticidade inglesa, desafiando o conformismo da burguesia e da aristocracia. A roupa, o sexo, as casas, os fundamentos da família, a mulher, o manual de domesticidade de 1.700 páginas de Mrs. Beeton... Tudo estava sujeito ao escrutínio dos habitantes de Boêmia, um país imaginário, tatuado na alma dos artistas, refugiados livres, soltos para inventar o novo.
O relacionamento dos ingleses com a comida sempre foi cercado de um certo puritanismo. Prazer e comida? Será? Orgulhavam-se patrioticamente da boa qualidade dos ingredientes, reconheciam os belos rosbifes, a honesta torta de maçã e a cerveja, mas...
Uma escritora, em suas memórias de infância, conta que reclamava das eternas e monótonas costeletas de carneiro, ao que a mãe retrucava: "Você tem as árvores, os passarinhos e as flores, a comida é o de menos!"
A aristocracia comia bem e muito. Mas era sempre a mesa se dobrando sob a caça farta e o excesso de pratos, coisa que também desagradava aos boêmios, que deram as costas às sempre rígidas regras e saíram à procura de uma dieta que combinasse com seus ideais de arte, verdade, antimaterialismo e... também com sua pobreza, algumas vezes até voluntária.
A inspiração vinha das viagens à procura do sol e da vida simples. Tudo era exótico, bastaria não ser inglês. Para Vanessa Bell, todas as obras de arte francesa se equiparavam ao delicioso pão, às maioneses picantes, aos vinhos. Detestava a sofisticação das paupiettes, timbales, musses -queria a simplicidade rústica, o uso adequado dos alhos, ervas e cebolas, o torresmo de porco, o vinhozito de mesa barato e bom, estes sim, condizentes com os ideais boêmios de gente sensual, liberada e corajosa.
Do que se lembravam com saudade ao voltarem dos passeios? Uma refeição ao ar livre, um cordeiro assando sobre galhos secos de videira enquanto esperavam deitados na grama, comendo azeitonas ao funcho com pão e poutargue, tendo nas mãos taças de Châteauneuf du Pape.
E tentavam recriar aqueles cheiros impossíveis de Paris, o alho, o azeite, o Pernod, o cigarro forte.
Harold Acton conseguiu agüentar a comida horrível da universidade fazendo ravióli ao sugo, passando manteiga trufada no pão, assando pizzas e sonhando com marrons glacês. Dora Carrington, mulher de Lytton Strachey, aprendeu a cozinhar (coisa quase impossível para uma mulher, e ainda mais artista, na época). Coelho ensopado, lagosta, molho velouté, cogumelos refogados, risoto de amêndoas, salmão com molho tártaro, morangos macerados no kirsch, crème brulée, zabaglione...
Presume-se, pelos ingredientes que menciona, que havia dinheiro no cofrinho. Os mais pobres e que moravam nos subúrbios mantinham uma horta e um galinheiro, faziam pão em casa, em perfeita sintonia com a natureza.
Os ovos, mexidos, com hadoque, escalfados, fritos, batidos, foram a salvação de muito artista urbano, esfomeado, no seu estúdio minúsculo munido de apenas um fogareiro. Sem esquecer o pot-au-feu, o cheiro forte de osso e legumes se enfiando por todas as frestas, mijotando dias em dias...
A hora da exasperação chegava, porque o artista passava fome, mas o que queria mesmo, e achava que merecia, era a melhor comida do mundo. Como escrever, pintar e cozinhar? "Estou acima das coisas materiais, tenho ódio de gastar meu tempo para me manter viva, quando todas as minhas horas deveriam ser dedicadas à arte. Mas, se não comer, eu morro". Katherine Mansfield.
O que é uma outra história, para uma outra vez.


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