|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Augusto foi nosso Brecht
ADERBAL FREIRE-FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O TEATRO brasileiro no
mundo tem um nome:
Augusto Boal.
Vá a Amsterdã, entre numa
livraria e peça um livro de
Boal. Você não vai conseguir
ler, a menos que saiba holandês. Boal está traduzido muito além do espanhol, do francês e do inglês. Mas não estou
aqui para falar dos livros, quero falar do homem. E começo
ouvindo esse homem falando,
o ritmo da fala, a música que
vai juntando frases harmoniosamente, com um pensamento claro, a cadência das
palavras, uma respiração buscada no fundo do peito para
uma frase mais e, depois,
quando o raciocínio se completa, um volteio e um final
em que os temas se fecham,
com extraordinária clareza.
Estou ouvindo uma explicação que me deu sobre um
seminário seu com atores da
Royal Shakespeare Company. Ali, o teatro ainda tem a
força dos seus melhores tempos -se você abre o programa
de uma peça, vai encontrar
duas páginas com os nomes
de quem faz aquele teatro
existir, começando com os de
sua patrona e de seu presidente, Sua Majestade, a Rainha e Sua Alteza Real, o Príncipe de Gales, indo até os contrarregras e o pessoal da maquiagem, passando pelos atores, o centro de tudo. Isto é, ali
está a Inglaterra inteira.
Pois
estava claro para a companhia que seus atores precisavam conhecer mister, dom
Augusto Boal, artista capaz de
fazer um teatro mais aberto
para a sociedade do que qualquer outro, capaz de transformar o espectador em ator.
E levaram Boal para conviver com eles, treinaram suas
técnicas, sabendo que assim
chegariam mais perto ainda
do povo, como chegava o cidadão William Shakespeare.
E digo cidadão pensando na
frase de Boal, dia desses, na
Unesco: "Cidadão não é aquele que vive em sociedade, é
aquele que a transforma".
O Alcione Araújo me telefona, "não vou esquecer meu
diálogo com o Boal para uma
revista, à propósito da sua autobiografia". Geraldinho Carneiro me escreve, "as célebres
façanhas poéticas e conceituais do Boal, o teatro invisível, o teatro do oprimido". Era
preciso muitos fôlegos, por
trás da voz mansa, para ter
tanta presença no teatro do
Brasil, do mundo, do seu tempo, de todos os tempos.
Pode-se dizer muito dele.
Prefiro escolher nesse abraço
a lembrança de uma ação nacional, que talvez não tenha
muita valia na sua cotação internacional, mas, céus, como
enriqueceu o teatro brasileiro. Em meados dos anos 50,
Boal organiza o seminário de
dramaturgia do Teatro de
Arena, marco da história da
nossa cena, e forma uma das
nossas mais brilhantes gerações de autores, em que despontam Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri.
Nunca me esqueci da sua
revolução na América do Sul,
o teatro brasileiro moderno
nascendo, sua geração botando o dendê no caldo que Nelson Rodrigues começara a
preparar. E "Arena Conta
Zumbi", Tiradentes, outros
brechts pelo mundo, me lembro de Santiago García, da Colômbia, e ouço Eugenio Barba
dizendo "é o Brecht deles", foi
nosso Brecht o Boal.
Nos encontramos pela última vez na sala de espera do
consultório do Flávio, para
tratar de nossos corações, era
véspera da sua viagem a Paris,
onde receberia o título de embaixador mundial do teatro. E
me disse, "na volta vamos tomar um vinho lá em casa".
Não sabíamos que entre esse
encontro e o vinho prometido
"ia passar o famoso rio Aqueronte, o insuperável".
Mas imagino que, ao lado
de Cecília, tua querida e admirável companheira, a única
voz que ouço te chamar de
Augusto, diante do Arpoador,
visto da janela do teu acolhedor apartamento, tomas esse
vinho, imortal Augusto Boal.
ADERBAL FREIRE-FILHO é diretor de peças como "Apareceu a Margarida", de 1973, e "As Centenárias", em cartaz em São Paulo
Texto Anterior: Repercussão Próximo Texto: Franceses têm boa participação Índice
|