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Comentário
Longa é fiel ao espírito da peça de Tchekhov
BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
É inevitável a comparação de
"Moscou", de Eduardo Coutinho, com dois outros filmes:
"Jogo de Cena", do próprio cineasta -não apenas por ser seu
documentário anterior e, devido a sua repercussão, fonte natural de expectativa quanto aos
projetos subsequentes do diretor, mas por também tratar de
teatro-, e "Tio Vânia na Rua
42", de Louis Malle, que também representa o ensaio de
uma peça de Tchekhov.
Em ambos os casos, "Moscou" corre o risco de sair perdendo, numa visão apressada.
O filme não almeja nem as surpresas teatrais de "Jogo de Cena" nem a precisão e a sutileza
interpretativa de Malle. O surpreendente no longa é de outra
ordem, menos evidente. E vem
de uma analogia entre o projeto
desse documentário e o entrecho da peça ensaiada, ambos fadados a um tipo de fracasso que
é ao mesmo tempo a sua redenção e a sua beleza.
Apaixonado por "As Três Irmãs", de Tchekhov, o cineasta
propôs a Enrique Diaz, um dos
diretores mais originais do teatro brasileiro contemporâneo,
trabalhar a peça com os atores
do grupo Galpão, de Belo Horizonte. Em nenhum momento a
proposta visava à montagem
integral da peça, o que seria impossível em três semanas (tempo de duração das filmagens). A
ideia era documentar os ensaios de uma peça que nunca
estrearia. Essa situação -de
um ensaio que não é ensaio, fingindo ser (a obra como o esforço de realização de uma obra
que, já se sabe, não se realizará)- põe o filme em sintonia
com o drama dos personagens
diante da irrealização.
A peça conta a história de
três irmãs e um irmão numa cidade de província, depois da
morte do pai militar, tendo que
lidar com a consciência progressiva da irrealidade de seus
sonhos (voltar para Moscou, alcançar sucesso no amor e na vida profissional etc.), enredados
na realidade medíocre e irreversível que os cerca e à qual
tentaram em vão escapar.
Uma vez filmados, os métodos de ensaio do Grupo Galpão
sob a direção de Diaz (incorporação da experiência e das histórias pessoais dos atores à
construção dos personagens)
parecem querer repetir os efeitos e os jogos de cena do documentário precedente de Coutinho, num tom menor, o que poderia dar a impressão de inércia
e diluição. Mas a ambiguidade
entre ficção e realidade já não é
o centro das atenções.
Os atores podem trazer fotos
pessoais, às quais se referem
com nostalgia, como se fossem
personagens. Um deles pode
falar de Moscou, empunhando
uma foto da cidade de sua infância, ao que tudo indica no interior de Minas. Outro pode se
referir ao filho recém-nascido,
diante da foto do próprio pai,
como se fosse o personagem
anunciando o nascimento do filho ao pai morto. Mas o principal não é a confusão entre a experiência pessoal dos atores e
os personagens. Para quem está acostumado aos laboratórios
de grupos teatrais contemporâneos, seria demasiado trivial.
"Moscou" cria uma analogia
entre o projeto do filme e a sensação de vida (in)acabada dos
personagens. Assim como a vida na província, o fracasso e a
frustração, o esquecimento e o
sentimento de não poder ir a
lugar nenhum fazem deles, por
oposição, personagens dramaticamente realizados e universais, é por meio de um projeto
que nunca chegará a termo, um
ensaio que nunca se realizará
em uma montagem, que Coutinho arranca da peça o seu sentido. E, na irrealização deliberada do filme, representação de
um processo que não terá fim
nem conclusão, realiza o drama
de um dos maiores textos do
teatro universal.
BERNARDO CARVALHO é escritor, autor de "O Filho da Mãe" (Companhia das Letras).
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