São Paulo, terça-feira, 04 de agosto de 2009

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Comentário

Longa é fiel ao espírito da peça de Tchekhov

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

É inevitável a comparação de "Moscou", de Eduardo Coutinho, com dois outros filmes: "Jogo de Cena", do próprio cineasta -não apenas por ser seu documentário anterior e, devido a sua repercussão, fonte natural de expectativa quanto aos projetos subsequentes do diretor, mas por também tratar de teatro-, e "Tio Vânia na Rua 42", de Louis Malle, que também representa o ensaio de uma peça de Tchekhov.
Em ambos os casos, "Moscou" corre o risco de sair perdendo, numa visão apressada. O filme não almeja nem as surpresas teatrais de "Jogo de Cena" nem a precisão e a sutileza interpretativa de Malle. O surpreendente no longa é de outra ordem, menos evidente. E vem de uma analogia entre o projeto desse documentário e o entrecho da peça ensaiada, ambos fadados a um tipo de fracasso que é ao mesmo tempo a sua redenção e a sua beleza.
Apaixonado por "As Três Irmãs", de Tchekhov, o cineasta propôs a Enrique Diaz, um dos diretores mais originais do teatro brasileiro contemporâneo, trabalhar a peça com os atores do grupo Galpão, de Belo Horizonte. Em nenhum momento a proposta visava à montagem integral da peça, o que seria impossível em três semanas (tempo de duração das filmagens). A ideia era documentar os ensaios de uma peça que nunca estrearia. Essa situação -de um ensaio que não é ensaio, fingindo ser (a obra como o esforço de realização de uma obra que, já se sabe, não se realizará)- põe o filme em sintonia com o drama dos personagens diante da irrealização.
A peça conta a história de três irmãs e um irmão numa cidade de província, depois da morte do pai militar, tendo que lidar com a consciência progressiva da irrealidade de seus sonhos (voltar para Moscou, alcançar sucesso no amor e na vida profissional etc.), enredados na realidade medíocre e irreversível que os cerca e à qual tentaram em vão escapar.
Uma vez filmados, os métodos de ensaio do Grupo Galpão sob a direção de Diaz (incorporação da experiência e das histórias pessoais dos atores à construção dos personagens) parecem querer repetir os efeitos e os jogos de cena do documentário precedente de Coutinho, num tom menor, o que poderia dar a impressão de inércia e diluição. Mas a ambiguidade entre ficção e realidade já não é o centro das atenções.
Os atores podem trazer fotos pessoais, às quais se referem com nostalgia, como se fossem personagens. Um deles pode falar de Moscou, empunhando uma foto da cidade de sua infância, ao que tudo indica no interior de Minas. Outro pode se referir ao filho recém-nascido, diante da foto do próprio pai, como se fosse o personagem anunciando o nascimento do filho ao pai morto. Mas o principal não é a confusão entre a experiência pessoal dos atores e os personagens. Para quem está acostumado aos laboratórios de grupos teatrais contemporâneos, seria demasiado trivial.
"Moscou" cria uma analogia entre o projeto do filme e a sensação de vida (in)acabada dos personagens. Assim como a vida na província, o fracasso e a frustração, o esquecimento e o sentimento de não poder ir a lugar nenhum fazem deles, por oposição, personagens dramaticamente realizados e universais, é por meio de um projeto que nunca chegará a termo, um ensaio que nunca se realizará em uma montagem, que Coutinho arranca da peça o seu sentido. E, na irrealização deliberada do filme, representação de um processo que não terá fim nem conclusão, realiza o drama de um dos maiores textos do teatro universal.

BERNARDO CARVALHO é escritor, autor de "O Filho da Mãe" (Companhia das Letras).



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