São Paulo, terça-feira, 04 de agosto de 2009

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Crítica/"Moscou"

Filme mostra busca radical por novos caminhos

Eduardo Coutinho mantém temas de "Jogo de Cena", mas indica recomeço

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Roberto Rossellini via na imaginação um perigo, pois era um perigoso modificador da realidade. Para ele, o mundo está aí. Cabe ao cinema registrá-lo. É provável que um documentarista como Eduardo Coutinho desejasse mais do que ninguém ser fiel a essas ideias.
Desde "Santo Forte" (1999), os documentários de Coutinho deixam-se contaminar pelo imaginário. Por mais que registre o real palpável, visível, a imaginação se intromete e o transforma.
Toda a obra recente desse autor tem consistido, de certa forma, em buscar a ambiguidade e, quando necessário, provocá-la. Foi assim com o recente ""Jogo de Cena", espécie de ponto terminal de toda uma busca. Ali, Coutinho levava às últimas consequências seu questionamento sobre a encenação. ""Moscou" é, nesse sentido, uma sequência e um recomeço.
As primeiras cenas evocam um filme de Coutinho. Um homem diante da câmera lembra seu passado em Moscou. O que é isso? Um ex-exilado, talvez, às voltas com seu passado? Ou um ator que diz seu texto? Pouco depois, algo parece se definir: um grupo de atores prepara-se para encenar ""As Três Irmãs". Logo notamos que o lugar referido, à parte Moscou, é Belo Horizonte.
O filme evoca, então, a condição teatral (nada a inventar: é o registo do trabalho dos atores).
Mas algo vem se imiscuir. A adaptação de um texto supõe viagem no tempo: um século.
Assistir a uma montagem de Tchekhov soa evidente. Quando vemos as três irmãs em cena, isso já não parece tão natural. O mundo se deslocou nesse meio tempo. A Rússia passou do czarismo ao capitalismo. O que elas sabem disso? Nada, e é possível que isso lhes importe pouco, porque existe ainda essa outra viagem a anular a distância entre Rússia e Brasil. Os textos viajam, encarnam em atores que lhe dão uma nova vida.
A mise-en-scène de "Moscou" arma-se nesse ecoar permanente de espaços e tempos uns sobre os outros, como se o mundo só pudesse mostrar seu mistério sem permitir que o sentido repouse no texto, na encenação ou na filmagem.
A radicalidade que marca o cinema de Coutinho como que se recompõe após ter atingido uma espécie de ponto de chegada em "Jogo de Cena" e busca um desafio novo.


MOSCOU
Avaliação: ótimo




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