São Paulo, sexta, 4 de setembro de 1998

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GASTRONOMIA

Tudo se pode entrever nas cartas de nosso Caminha

NINA HORTA
especial para a Folha

Se está interessado em moda vai perceber que os portugueses acharam nossos índios bonitos, galantes, curados. Hoje, sarados. Bem alimentados, pele luzidia, olhos brilhantes alegres, prestativos. Bem vestidos para a ocasião, ou bem desvestidos.
Já os portugueses seriam arrasados por Glorinha Kalil. Tanta impropriedade, impossível. Falta de bom senso. Era a hora tão rara dos bermudões e da sandália havaiana. Passavam por aqui sem compromissos, como se chega até Las Palmas, para abastecer. Querem água, se distrair um pouco, pescar uns peixinhos de rede e de anzol, lavar roupa.
Dizem que não tomaram banho. Duvido. O que ficaram fazendo no ilhéu da baía, em folguedos? Que folguedos, senão o de ficarem nus, bobamente se jogando água, correndo para a areia, comendo uns brotos de palmito ou do que lá que seja, já que não existiam nem cocos nem bananas?
Cabral pisou na bola da moda. Nos trópicos convida os índios e se mete numa fatiota nova, escura, de lã fina ou baeta grossa, anéis nos dedos e longa corrente de ouro ao pescoço, sentado em cadeira de espaldar em sala de candelabros de prata. Errou. Preocupou-se demais com as aparências, com querer mostrar "puder". E os índios nem aí, donos da mata e das praias, singelamente nus.
Cabral, nosso altíssimo Cabral, mandou um espia degredado à casa dos moradores e viu que eram gente de poucas posses como as de entre o Douro e o Minho. Não se incomodou em agradá-los muito. Tinha os olhos fixos em Calecute.
De presente, barretinhos, boinas, guizos... e eles depois de ganharem os presentes se esquivavam como "pardais de cevadouro", "uma esquiveza como de animais monteses". Teve foi sorte de encontrar índios de boa índole que não lhe furaram a barriga com uma seta para pegar o espólio. Faltou-lhe ao Pedro Álvares a intuição para os negócios.
Poderia ter aberto ali, na hora, a filial, a primeira The Body Shop a unir os mundos.
Bem, nessa hora de primeiros contatos acontece o inesperado. Os portugueses querem ver a reação dos índios. Mostraram-lhes um carneiro, não fizeram dele caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela, não lhe queriam pôr a mão e depois a tomaram como que espantados.
Como é que se pode quase ter medo? E como é que índios acostumados com uma enorme variedade de pássaros haviam de ficar com frescura com uma galinha? Diremos que desconheciam a ave por ela ser da Índia. E daí?
Nunca tinham visto um carneiro e nem lhe fizeram caso.
É fácil imaginar o que aconteceu. Temos intimidade com este bicho que é a galinha, insegura, medrosa, cheia de incertezas. Vinha viajando há 40 dias, cheirava mal, o pescoço já não tinha penas, coçavam- lhe os piolhos.
E o grande medo ancestral da morte, súbito, viscoso, a angústia lispector veio à tona. Olhos miúdos de pânico, o que podia pensar a pobre coitada, enjoada do jogar do navio, viajando em quinta classe, segura pelas pernas, nariz beijando as alcatifas?
Panela! Desandou naquele bater de asas fremitoso, no grito muito alto e estridente, no alvoroço, enfim no velho e conhecido escândalo das galinhas.
Os índios, é claro, se assustaram um pouco, quem não se assustaria diante do cacarejo? Bicho louco, pensaram, e quase tiveram medo dela. Quase.
"Deste Porto Seguro, de vossa ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500." Explicando o Brasil...
E há ainda o mistério do tubarão pescado, do seu destino, de misteriosos palmitos que não eram palmitos, e de inhames que não eram inhames e que ficam para outro dia...

E-mail: ninahort@uol.com.br



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