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GASTRONOMIA
Tudo se pode entrever nas
cartas de nosso Caminha
NINA HORTA
especial para a Folha
Se está interessado em moda vai
perceber que os portugueses acharam nossos índios bonitos, galantes, curados. Hoje, sarados. Bem
alimentados, pele luzidia, olhos
brilhantes alegres, prestativos.
Bem vestidos para a ocasião, ou
bem desvestidos.
Já os portugueses seriam arrasados por Glorinha Kalil. Tanta impropriedade, impossível. Falta de
bom senso. Era a hora tão rara dos
bermudões e da sandália havaiana.
Passavam por aqui sem compromissos, como se chega até Las Palmas, para abastecer. Querem água,
se distrair um pouco, pescar uns
peixinhos de rede e de anzol, lavar
roupa.
Dizem que não tomaram banho.
Duvido. O que ficaram fazendo no
ilhéu da baía, em folguedos? Que
folguedos, senão o de ficarem nus,
bobamente se jogando água, correndo para a areia, comendo uns
brotos de palmito ou do que lá que
seja, já que não existiam nem cocos
nem bananas?
Cabral pisou na bola da moda.
Nos trópicos convida os índios e se
mete numa fatiota nova, escura, de
lã fina ou baeta grossa, anéis nos
dedos e longa corrente de ouro ao
pescoço, sentado em cadeira de espaldar em sala de candelabros de
prata. Errou. Preocupou-se demais com as aparências, com querer mostrar "puder". E os índios
nem aí, donos da mata e das praias,
singelamente nus.
Cabral, nosso altíssimo Cabral,
mandou um espia degredado à casa dos moradores e viu que eram
gente de poucas posses como as de
entre o Douro e o Minho. Não se
incomodou em agradá-los muito.
Tinha os olhos fixos em Calecute.
De presente, barretinhos, boinas,
guizos... e eles depois de ganharem
os presentes se esquivavam como
"pardais de cevadouro", "uma esquiveza como de animais monteses". Teve foi sorte de encontrar índios de boa índole que não lhe furaram a barriga com uma seta para
pegar o espólio. Faltou-lhe ao Pedro Álvares a intuição para os negócios.
Poderia ter aberto ali, na hora, a
filial, a primeira The Body Shop a
unir os mundos.
Bem, nessa hora de primeiros
contatos acontece o inesperado.
Os portugueses querem ver a reação dos índios. Mostraram-lhes
um carneiro, não fizeram dele caso. Mostraram-lhes uma galinha,
quase tiveram medo dela, não lhe
queriam pôr a mão e depois a tomaram como que espantados.
Como é que se pode quase ter
medo? E como é que índios acostumados com uma enorme variedade de pássaros haviam de ficar com
frescura com uma galinha? Diremos que desconheciam a ave por
ela ser da Índia. E daí?
Nunca tinham visto um carneiro
e nem lhe fizeram caso.
É fácil imaginar o que aconteceu.
Temos intimidade com este bicho
que é a galinha, insegura, medrosa,
cheia de incertezas. Vinha viajando há 40 dias, cheirava mal, o pescoço já não tinha penas, coçavam-
lhe os piolhos.
E o grande medo ancestral da
morte, súbito, viscoso, a angústia
lispector veio à tona. Olhos miúdos
de pânico, o que podia pensar a pobre coitada, enjoada do jogar do
navio, viajando em quinta classe,
segura pelas pernas, nariz beijando
as alcatifas?
Panela! Desandou naquele bater
de asas fremitoso, no grito muito
alto e estridente, no alvoroço, enfim no velho e conhecido escândalo das galinhas.
Os índios, é claro, se assustaram
um pouco, quem não se assustaria
diante do cacarejo? Bicho louco,
pensaram, e quase tiveram medo
dela. Quase.
"Deste Porto Seguro, de vossa
ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500."
Explicando o Brasil...
E há ainda o
mistério do tubarão pescado, do seu
destino, de
misteriosos
palmitos que
não eram
palmitos, e
de inhames que
não eram
inhames e
que ficam
para outro
dia...
E-mail: ninahort@uol.com.br
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