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CONTARDO CALLIGARIS
Escombros do World Trade Center
BABEL
Até a semana passada, das torres do World Trade Center sobrava um esqueleto metálico de sete
andares que foi fotografado mil
vezes: espécie de triângulo de arcos sobrepostos no meio da fumaça que emanava dos escombros.
A imagem evocava as formas
que a iconografia da Renascença
atribuiu à torre de Babel: justamente andares de arcos afinando
progressivamente na subida
-como se a torre fosse um cone.
Os restos das torres se assemelhavam, em suma, aos restos da torre
de Babel depois da cólera divina.
A similitude era reforçada pela
interpretação imediata do enfrentamento que levou à catástrofe. Nas torres trabalhavam (e
morreram) pessoas vindas de cada canto da terra. Aparentemente, eles tinham realizado o antigo
projeto de Babel: conviviam e,
bem ou mal, comunicavam-se
(concordando ou discordando)
apesar das diferenças étnicas, linguísticas, religiosas e sociais. Esse
projeto ambicioso de convivência
universal foi abatido, como na
história bíblica, por clarões de cólera divina -melhor dito (e para
deixar os deuses fora dessa), por
sujeitos convencidos de serem os
braços da cólera divina.
Mas essa é a impressão imediata. Os escombros sugerem também uma meditação mais complexa e mais desesperada.
As torres acrescentavam uma
especificação ao antigo desejo de
Babel. A denominação (World
Trade Center, que quer dizer Centro Mundial do Comércio) e a
função das torres sugeriam o seguinte: o projeto de uma humanidade que ultrapasse suas diferenças está sendo realizado pela modernidade ocidental, mas ao preço da primazia do mercado na vida humana.
Ou seja, se formos todos homens
econômicos, seremos suficientemente parecidos para que a comunicação entre nós seja fácil. O
comércio será nossa pátria comum. Vamos nos definir como
força de trabalho, como poder de
compra ou como consumidores.
Vamos detalhar nossas ambições
em listas de mercadorias. Desde
então, por mais que desejemos
coisas diferentes e escolhamos estilos de vida distintos, teremos
uma língua comum. O risco será
que, a esta altura, não tenhamos
nada muito interessante para
conversar.
Ora, como alternativa à primazia do mercado que nos permitiria sermos cidadãos de um mesmo mundo, os terroristas viriam
com um particularismo tribal que
nem contempla a possibilidade
da convivência com o diferente.
Proporção: a globalização estaria para as torres do World Trade
Center como a antiglobalização
estaria para o fundamentalismo
dos terroristas que as demoliram.
Será que nosso destino está preso entre vivermos juntos como
puros agentes econômicos e exaltarmos nossas diferenças como fés
irredutíveis e inconciliáveis?
BANDEIRAS
Nestes dias, é banal encontrar nos
jornais a imagem de pequenos
grupos, nas ruas de algum país islâmico, queimando bandeiras
americanas. Todos exultam e
olham para a câmara com um ar
satisfeito, na esperança de que
um espectador americano sofra
com esse vitupério que, a seus autores, deve parecer extremo.
Será que eles sabem que, nos
EUA, se discute regularmente para defender o direito de queimar
a bandeira como forma de protestar? Sabem que esse ato se tornou
comum desde as manifestações
dos anos 60?
Coloco essa pergunta para um
amigo paquistanês-americano.
Responde que obviamente eles
não sabem. Nem imaginam. Mas,
se soubessem que queimar a bandeira americana é permitido nos
EUA, não teriam admiração nenhuma por essa forma extrema
de democracia. Ao contrário, desprezariam ainda mais uma nação que lhes pareceria indigna
por deixar que seus cidadãos ultrajem o símbolo do país.
Impasse da diferença: nossas liberdades aparecem como provas
de decadência aos olhos dos fundamentalistas. E as obediências
das quais eles se orgulham são,
para nós, a assinatura do atraso.
VULNERABILIDADE
Os terroristas frequentaram escolas de pilotagem nos EUA. Outros
suspeitos, interrogados recentemente pelo FBI, estavam preparando a carteira especial para dirigir caminhões com carga tóxica
ou explosiva. Aqui é fácil estudar,
circular, reunir-se sem ter de esconder a diferença. Osama bin
Laden - se é, como parece, o
mandatário do ataque- deve
achar que os ocidentais, e sobretudo os americanos, são perfeitos
panacas, pois veneram logo as liberdades, que, de fato, lhe facilitaram o trabalho.
Infelizmente, as coisas podem
mudar. O cotidiano americano
está sendo transformado pelas
necessidades do combate contra a
infiltração terrorista. O embarque, nos aeroportos, está cada vez
mais lento. Há filas para atravessar as pontes que vão para Manhattan, pois os veículos são revistados. Há blitze na proximidade dos reservatórios de água. Se
houver novos atentados, chegará
algum tipo de legislação de exceção. O uso de critérios étnicos no
trabalho da polícia será tolerado,
se não autorizado. Será o primeiro verdadeiro sucesso dos terroristas: levar os EUA, a Europa e, aos
poucos, todo o Ocidente a comprometer as liberdades, que são a
melhor parte de nossa cultura.
ccalligari@uol.com.br
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