São Paulo, terça-feira, 04 de outubro de 2005

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ERUDITO/CRÍTICA

Potências e transcendências da Filarmônica de Dresden

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

No segundo compasso a orquestra já estava coesa e vibrante, inteira na música. Era o começo da "Sinfonia nš 3" de Brahms (1833-97) -compositor que chegou a reger a própria Filarmônica de Dresden, agora sob comando do maestro espanhol Rafael Frühbeck de Burgos. O começo anunciava um meio e um fim; e o programa de domingo, no teatro Cultura Artística, incluía, desnecessariamente, Respighi (1879-1936), mas depois "O Pássaro de Fogo", de Stravinski (1882-1971).
Pelo menos parte do enigma da "Terceira" de Brahms tem a ver com a natureza ambivalente da música, não só no plano dos sentidos mas da forma: sinfonia e música de câmara se confundem aqui a todo momento. A elaboração melódica se baseia numa refinadíssima arte da variação, que remete mais aos quartetos e sonatas do que às obras sinfônicas da década de 1880, quando ela foi composta. E essa mesma arte vai torcendo o significado aparente de muitos temas, que podem servir, por exemplo, de abertura e de fecho, sucessivamente.
Isso exige, por um lado, transparência e atenção às minúcias; por outro, o controle total dos grandes movimentos. Regendo tudo de memória, com simplicidade conquistada, Frühbeck de Burgos mantém a Filarmônica de Dresden literalmente nos dedos. E a Filarmônica -formada, entre outros, na sua história recente, pelo perfeccionista Kurt Masur, regente honorário da orquestra- responde com complexidade e algum entusiasmo (só algum, sem maior efusão).
Em 2002, a mesma orquestra esteve no Cultura Artística, regida por Roderich Kreile. Naquela noite de grande música, alguma frustração ficava mesmo assim no ar, pelo efeito de uma orquestra capaz de tocar sempre assim, sem maiores surpresas.
Não foi o caso no terceiro movimento de Brahms, o "Poco Allegretto", que de "poco" não tinha nada e nem por isso perdeu suas melancolias. Era a música predileta do escritor Erico Verissimo, que teria adorado essa energia matizada de tristeza. O final, depois, um prodígio de contraponto, termina numa coda que alude a esses afetos mais recolhidos. Chegou a ser humanamente enfática, então, a nota do clarinetista, que sobrou sozinha por um segundo depois do último acorde.
Não poderia haver personalidade menos brahmsiana do que Stravinski, que em 1910, aos 28 anos, arrebentava as portas da música européia com "O Pássaro de Fogo". Composta para os Balés Russos de Diaghilev, a suíte inaugura a inacreditável trilogia que inclui "Petrouchka" (1912) e "A Sagração da Primavera" (1913).
Muito influenciada por Rimski-Korsakov, a partitura é um assombro de apropriação poética: Stravinski simplesmente se adona da música anterior e faz com ela o que quer. Que a música hoje soe mais russa do que há 20 ou 30 anos é sinal de que nossa ingenuidade diminuiu. O que não diminuiu foi a controlada loucura da "Dança Infernal", nem o estranho amor da "Berceuse".
No "Pássaro", a Filarmônica de Dresden deu tudo o que se espera de uma grande orquestra: potência, fluência, inteligência, transcendência. Essa música resiste e ampara o mundo há quase cem anos. Tocada assim, pode continuar fazendo seu trabalho por muito mais.


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