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ERUDITO/CRÍTICA
Potências e transcendências da Filarmônica de Dresden
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
No segundo compasso a orquestra já estava coesa e vibrante, inteira na música. Era o começo da "Sinfonia nš 3" de
Brahms (1833-97) -compositor
que chegou a reger a própria Filarmônica de Dresden, agora sob
comando do maestro espanhol
Rafael Frühbeck de Burgos. O começo anunciava um meio e um
fim; e o programa de domingo, no
teatro Cultura Artística, incluía,
desnecessariamente, Respighi
(1879-1936), mas depois "O Pássaro de Fogo", de Stravinski
(1882-1971).
Pelo menos parte do enigma da
"Terceira" de Brahms tem a ver
com a natureza ambivalente da
música, não só no plano dos sentidos mas da forma: sinfonia e
música de câmara se confundem
aqui a todo momento. A elaboração melódica se baseia numa refinadíssima arte da variação, que
remete mais aos quartetos e sonatas do que às obras sinfônicas da
década de 1880, quando ela foi
composta. E essa mesma arte vai
torcendo o significado aparente
de muitos temas, que podem servir, por exemplo, de abertura e de
fecho, sucessivamente.
Isso exige, por um lado, transparência e atenção às minúcias;
por outro, o controle total dos
grandes movimentos. Regendo
tudo de memória, com simplicidade conquistada, Frühbeck de
Burgos mantém a Filarmônica de
Dresden literalmente nos dedos.
E a Filarmônica -formada, entre
outros, na sua história recente,
pelo perfeccionista Kurt Masur,
regente honorário da orquestra-
responde com complexidade e algum entusiasmo (só algum, sem
maior efusão).
Em 2002, a mesma orquestra esteve no Cultura Artística, regida
por Roderich Kreile. Naquela noite de grande música, alguma frustração ficava mesmo assim no ar,
pelo efeito de uma orquestra capaz de tocar sempre assim, sem
maiores surpresas.
Não foi o caso no terceiro movimento de Brahms, o "Poco Allegretto", que de "poco" não tinha
nada e nem por isso perdeu suas
melancolias. Era a música predileta do escritor Erico Verissimo,
que teria adorado essa energia
matizada de tristeza. O final, depois, um prodígio de contraponto, termina numa coda que alude
a esses afetos mais recolhidos.
Chegou a ser humanamente enfática, então, a nota do clarinetista,
que sobrou sozinha por um segundo depois do último acorde.
Não poderia haver personalidade menos brahmsiana do que
Stravinski, que em 1910, aos 28
anos, arrebentava as portas da
música européia com "O Pássaro
de Fogo". Composta para os Balés
Russos de Diaghilev, a suíte inaugura a inacreditável trilogia que
inclui "Petrouchka" (1912) e "A
Sagração da Primavera" (1913).
Muito influenciada por Rimski-Korsakov, a partitura é um assombro de apropriação poética:
Stravinski simplesmente se adona
da música anterior e faz com ela o
que quer. Que a música hoje soe
mais russa do que há 20 ou 30
anos é sinal de que nossa ingenuidade diminuiu. O que não diminuiu foi a controlada loucura da
"Dança Infernal", nem o estranho
amor da "Berceuse".
No "Pássaro", a Filarmônica de
Dresden deu tudo o que se espera
de uma grande orquestra: potência, fluência, inteligência, transcendência. Essa música resiste e
ampara o mundo há quase cem
anos. Tocada assim, pode continuar fazendo seu trabalho por
muito mais.
Avaliação:
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