São Paulo, quinta-feira, 04 de novembro de 2004

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CINEMA

Japão leva apenas prêmio de consolação em Tóquio

Discreto, o uruguaio "Whisky" chega ao topo do festival nipônico

LÚCIA NAGIB
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE TÓQUIO

Um azarão acabou vencendo o 17º Festival Internacional de Cinema de Tóquio. Embora dominada pelo cinema asiático e sem nenhum representante dos novos cinemas do México, Argentina ou Brasil, a competição se viu infiltrada por uma obra modesta e solitária que discretamente cavou seu caminho até o topo. Trata-se de "Whisky", filme uruguaio, dirigido por Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, e financiado por um pool de produtoras estrangeiras, incluindo o instituto Sundance e a TV NHK japonesa.
Demonstrando coragem, o júri deu as costas a blockbusters, consagrando essa obra alienígena, mas cheia de qualidades. A principal delas é o roteiro impecável, que costura a atenção do espectador com pequenos detalhes como dizer "uísque" ao tirar fotos. A história é mínima: um judeu, que mantém uma rotina miserável em sua fábrica de meias, recebe a notícia da visita do irmão, que há décadas se mudou para o Brasil. Para simular uma mudança em sua vida, pede a sua funcionária que finja ser sua esposa.
O encontro dos três é fonte de grande turbulência emocional, mas que apenas se expressa em ações solitárias, como quando os personagens se escondem no banheiro para refletir. A opção realista pela filmagem em locações possibilita a identificação de um país que vive no passado e custa a acordar. Tal como esse país, que se faz conhecer pelos hotéis de ultrapassada opulência, ímãs de geladeira e persianas emperradas, a atriz Mirella Pascual revela seus sentimentos por gestos discretos, ao reforçar a maquiagem ou arriscar uma frase original. Sua ótima interpretação lhe valeu o prêmio de melhor atriz.
Dois outros filmes, que concentravam a maioria das apostas, vieram logo atrás. O primeiro é o chinês "Kekexili: Mountain Patrol" ("Kekexili: a Patrulha da Montanha"), de Lu Chuan, filme que denuncia a caça de veados nas montanhas do Tibete e levou o prêmio especial do júri. O segundo, já um sucesso de bilheteria na Coréia, é "The President's Barber" ("O Barbeiro do Presidente"), denúncia ingênua e caricata dos regimes totalitários do país, que valeu a premiação de seu diretor, Im Chang-sang.
Mas a surpresa maior foi a ausência de laureados japoneses, a não ser pela consolação de "melhor contribuição artística" para "Chicken Is Barefoot" ("A Galinha Está Descalça"), mistura de pastelão e filme de yakuza do veterano Azuma Morisaki.
Tal resultado, se prima pelo estrito critério artístico, não passou sem controvérsias, como ressaltou o presidente do júri, o conhecido diretor Yoji Yamada, que evidenciou seu embaraço diante dos colegas nipônicos decepcionados.
De todo modo, é necessário fazer justiça a alguns ótimos representantes asiáticos, sobretudo nas mostras paralelas. Johnny To, um dos gigantes do thriller de Hong Kong, compareceu com "Breaking News" ("Últimas Notícias"), enfocando o exibicionismo de polícia e bandidos para a mídia e mostrando por que Quentin Tarantino não tira os olhos do Oriente. Sua câmera, em planos-sequência de 360 graus, executa um balé estonteante pelo qual tiros, sangue e morte revelam seu caráter de mero espetáculo.
Conterrâneo mais jovem de To, Pang Ho Cheung mereceu uma mini-retrospectiva que também envereda pelo metacinema. Seu filme "Men Suddenly in Black" ("Homens de Repente de Preto"), por exemplo, é uma paródia do filme de gângster, enfocando maridos que resolvem trair as mulheres quando elas fingem viajar. A comédia resulta da utilização dos truques do suspense para as ações dos súbitos traidores, que invariavelmente fracassam.
Cabe também lembrar o cinema feminino da China, um ramo que vem decrescendo com a privatização da produção cinematográfica e o conseqüente investimento em filmes de ação viris, como explicou a cineasta Li Shaohong. Ela apresentou seu belo "Baober in Love" ("Baober Apaixonada").
Por fim, um destaque para a sessão especial que encerrou o festival com um verdadeiro banho de sangue. Trata-se de "Three... Extremes" ("Três... Extremos"), filme-ônibus de três episódios, dirigidos por Fruit Chan (Hong Kong), Park Chan Wook (Coréia) e Takashi Miike (Japão).
São histórias de canibalismo, tortura e estranhos assassinatos que só podem derivar de sociedades de alto padrão de vida, cujo conforto as afasta do mundo físico. A ausência de prazer é o canal de conhecimento do real utilizado por essa corrente de cineastas que parece ter perdido toda fé na política e na transformação social.


Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora de "O Cinema da Retomada" (ed. 34) e "Nascido das Cinzas" (Edusp)


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