São Paulo, sábado, 04 de novembro de 2006

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Crítica/romances

Autores evidenciam sutilezas sociais do Oriente

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Ler "O Palácio de Espelhos", romance do indiano Amitav Ghosh, é embarcar numa aventura à moda antiga. Se não é exatamente um romance histórico, o livro inclui nacos de uma história que se inicia cem anos atrás e vem até a atualidade.
Os procedimentos são tradicionais. Há o velho narrador onisciente, há variações de ponto de vista e há personagens, alguns deles pelo menos, que parecem viver -o leitor não é lembrado o tempo todo de que se trata de um truque artístico, de que são meras figuras mentais engendradas a partir do branco e do preto da página.
As cortinas se abrem em 1895, poucas semanas antes da invasão inglesa à Birmânia (atual Mianmar). A ocupação muda radicalmente a vida de um punhado de sujeitos, como o rei e a rainha, as princesas e as aias que vivem no palácio de espelhos do título, uma cidadela murada em cujo paço real há um salão forrado de cristal e espelhos. Do séqüito, a principal figura é a criada Dolly, uma menina esguia de 10 anos.
É essa pequena órfã que o garoto indiano Rajkumar, órfão ele também, vê de relance durante o saque da população ao palácio. A vida de Rajkumar também se transforma. Com a ajuda de um comerciante malaio, ele enriquece com a exploração de teca e, depois, com o cultivo da seringueira nas florestas da Malásia. Dolly e Rajkumar se encontram, anos depois, como convém a esse tipo de narrativa, no exílio indiano da família real.
Mudanças continuam a ocorrer, com essa e com as futuras gerações. No pano de fundo transcorrem as duas guerras mundiais, a invasão japonesa, a luta pela independência na Índia, a ditadura em Mianmar. A visão nunca é maniqueísta.
Embora seja clara a impostura britânica, por exemplo, que alia o discurso sobre liberdade e progresso ao jugo e à exploração, não escapam a ninguém a crueldade dos antigos governantes nem a complacência dos subjugados.
O livro de Ghosh ganha muito quando confronta culturas de países que o Ocidente tende a enfiar num mesmo saco, sobretudo a birmanesa e a indiana. A partir desse cotejo, o leitor percebe as sutilezas que separam, por exemplo, uma Índia empobrecida e presa ao sistema de castas e uma Birmânia relativamente mais rica e dona de certa frugalidade que outorga à princesa o direito de casar com um cocheiro para escândalo de indianos e ingleses.
O tempo torna-se fator essencial deste romance, baseado em histórias contadas ao autor por seu tio e seu pai. Dias podem durar vários capítulos e, então, poucos parágrafos podem resumir anos e décadas inteiros. A transformação que esse tempo -tempo histórico, embalado por guerras e revoluções, por vidas e mortes e pelo bafo humano- impinge a pessoas e nações é que empresta o indisfarçável tom nostálgico do livro, constituindo um dos seus pontos fortes.

Conflito de classes
Não há nostalgia e quase não há passagem de tempo -a não ser por meio de flashbacks- em "A Distância entre Nós", da indiana radicada nos EUA Thrity Umrigar.
Como o título sugere, é o espaço que reina nessa narrativa -o espaço que separa ricos e pobres, velhos e jovens na Índia de hoje. O conflito se arma entre a favelada Bhima e a patroa pársi para quem ela trabalha há anos, Sera.
Bhima tem uma neta, Maya, que engravida. A vergonha causada pela gravidez fora do casamento e a possibilidade de Maya abandonar os estudos patrocinados por Sera fornecem molho ao enredo. O problema está no esforço. Umrigar se empenha em mostrar-se isenta, em iluminar ambos os lados (de desvalidos e abonados, de conservadores e liberais); empenha-se também em obter uma trama coesa.
E o esforço transparece. A distância que há entre ela e Ghosh é a que existe entre um escritor à vontade com os procedimentos artísticos e um diligente aspirante, disposto a usá-los a todo custo.


O PALÁCIO DE ESPELHOS     
Autor: Amitav Ghosh
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 69,90 (576 págs.)

A DISTÂNCIA ENTRE NÓS   
Autor: Thrity Umrigar
Tradução: Paulo Andrade Lemos
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 34,90 (336 págs.)


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