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Crítica/romances
Autores evidenciam sutilezas sociais do Oriente
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Ler "O Palácio de Espelhos", romance do indiano Amitav Ghosh, é
embarcar numa aventura à moda antiga. Se não é exatamente
um romance histórico, o livro
inclui nacos de uma história
que se inicia cem anos atrás e
vem até a atualidade.
Os procedimentos são tradicionais. Há o velho narrador
onisciente, há variações de
ponto de vista e há personagens, alguns deles pelo menos,
que parecem viver -o leitor
não é lembrado o tempo todo
de que se trata de um truque artístico, de que são meras figuras
mentais engendradas a partir
do branco e do preto da página.
As cortinas se abrem em
1895, poucas semanas antes da
invasão inglesa à Birmânia
(atual Mianmar). A ocupação
muda radicalmente a vida de
um punhado de sujeitos, como
o rei e a rainha, as princesas e as
aias que vivem no palácio de espelhos do título, uma cidadela
murada em cujo paço real há
um salão forrado de cristal e espelhos. Do séqüito, a principal
figura é a criada Dolly, uma menina esguia de 10 anos.
É essa pequena órfã que o garoto indiano Rajkumar, órfão
ele também, vê de relance durante o saque da população ao
palácio. A vida de Rajkumar
também se transforma. Com a
ajuda de um comerciante malaio, ele enriquece com a exploração de teca e, depois, com o
cultivo da seringueira nas florestas da Malásia.
Dolly e Rajkumar se encontram, anos depois, como convém a esse tipo de narrativa, no
exílio indiano da família real.
Mudanças continuam a ocorrer, com essa e com as futuras
gerações. No pano de fundo
transcorrem as duas guerras
mundiais, a invasão japonesa, a
luta pela independência na Índia, a ditadura em Mianmar.
A visão nunca é maniqueísta.
Embora seja clara a impostura
britânica, por exemplo, que alia
o discurso sobre liberdade e
progresso ao jugo e à exploração, não escapam a ninguém a
crueldade dos antigos governantes nem a complacência dos
subjugados.
O livro de Ghosh ganha muito quando confronta culturas
de países que o Ocidente tende
a enfiar num mesmo saco, sobretudo a birmanesa e a indiana. A partir desse cotejo, o leitor percebe as sutilezas que separam, por exemplo, uma Índia
empobrecida e presa ao sistema de castas e uma Birmânia
relativamente mais rica e dona
de certa frugalidade que outorga à princesa o direito de casar
com um cocheiro para escândalo de indianos e ingleses.
O tempo torna-se fator essencial deste romance, baseado
em histórias contadas ao autor
por seu tio e seu pai. Dias podem durar vários capítulos e,
então, poucos parágrafos podem resumir anos e décadas inteiros. A transformação que esse tempo -tempo histórico,
embalado por guerras e revoluções, por vidas e mortes e pelo
bafo humano- impinge a pessoas e nações é que empresta o
indisfarçável tom nostálgico do
livro, constituindo um dos seus
pontos fortes.
Conflito de classes
Não há nostalgia e quase não
há passagem de tempo -a não
ser por meio de flashbacks-
em "A Distância entre Nós", da
indiana radicada nos EUA
Thrity Umrigar.
Como o título sugere, é o espaço que reina nessa narrativa
-o espaço que separa ricos e
pobres, velhos e jovens na Índia
de hoje. O conflito se arma entre a favelada Bhima e a patroa
pársi para quem ela trabalha há
anos, Sera.
Bhima tem uma neta, Maya,
que engravida. A vergonha causada pela gravidez fora do casamento e a possibilidade de Maya abandonar os estudos patrocinados por Sera fornecem molho ao enredo.
O problema está no esforço.
Umrigar se empenha em mostrar-se isenta, em iluminar ambos os lados (de desvalidos e
abonados, de conservadores e
liberais); empenha-se também
em obter uma trama coesa.
E o esforço transparece. A
distância que há entre ela e
Ghosh é a que existe entre um
escritor à vontade com os procedimentos artísticos e um diligente aspirante, disposto a usá-los a todo custo.
O PALÁCIO DE ESPELHOS
Autor: Amitav Ghosh
Tradução: José Rubens Siqueira
Editora: Alfaguara
Quanto: R$ 69,90 (576 págs.)
A DISTÂNCIA ENTRE NÓS
Autor: Thrity Umrigar
Tradução: Paulo Andrade Lemos
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 34,90 (336 págs.)
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