São Paulo, quinta-feira, 04 de dezembro de 2008

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NINA HORTA

O crítico e os comedores


Comentários a respeito da crítica gastronômica a partir do livro do poeta anglo-americano T.S. Eliot, "To Criticize the Critic and Other Writings"

UMA DAS funções do crítico é ajudar o público de seu tempo a se dar conta de que tem mais afinidade com um "cozinheiro ou com um tipo de comida" do que com outros.
O crítico não cria o gosto, mas em qualquer tipo de crítica não há como não enfatizar sua inclinação por esse ou por aquele tipo de "comida".
Nós, os comedores, porém, temos que nos convencer de que as nossas teorias são epifenômenos de nossos gostos. De vez em quando, se produz uma revolução, uma mutação súbita na forma ou no conteúdo da "cozinha". Logo algumas pessoas descobrem que uma maneira de "cozinhar" praticada durante uma ou mais gerações já não responde aos modos contemporâneos de pensar, sentir, falar.
Aparece uma nova forma de "cozinhar" que se recebe, a princípio, com desprezo. Ouvimos dizer que estão escarnecendo a tradição e que se chegou ao caos.
Passado um certo tempo, fica claro que a nova maneira não é destrutiva, mas recreativa. Não repudiamos o passado, como querem crer os inimigos obstinados -e também os partidários mais obtusos- de qualquer movimento "culinário", mas o fato é que alargamos nossa concepção de passado. E, à luz do novo, vemos o passado com uma nova conformação.
Na crítica em geral, o historiador, o filósofo, o sociólogo podem desempenhar um papel destacado, mas na crítica puramente "gastronômica" talvez os "cozinheiros" que sabem escrever sobre sua própria arte tenham uma autoridade maior quando refletem sobre sua própria vocação e a de outros "cozinheiros". Quanto ao futuro, uma hipótese a ser defendida é que a progressão do conhecimento reflexivo, a extrema percepção consciente e a "demasiada" preocupação com as técnicas e "ingredientes, laboratórios, comida molecular, emotiva" sejam algo que a certa altura tende a se romper, pois submete todos a uma crescente tensão contra a qual hão de se rebelar a mente e os nervos humanos.
Da mesma maneira, a elaboração infinita dos descobrimentos e das invenções científicas "culinárias" pode chegar a um ponto no qual se produza uma irresistível reação dos "comedores", que se mostrará disposta a voltar ao incômodo do primitivismo para escapar da carga da civilização moderna (comida orgânica, dietas naturais).
O crítico deve atuar como uma espécie de engrenagem que regula o coeficiente da mudança do gosto "culinário". Quando a engrenagem enguiça, os críticos que escrevem as resenhas ficam paralisados no gosto da geração precedente e há que desmontar inexoravelmente a máquina e tornar a montá-la. Quando a engrenagem patina e o crítico aceita a novidade como critério suficiente de excelência, é necessário outra vez parar a máquina e reajustá-la.
O defeito das duas posições é que se provoca uma divisão entre aqueles que não vêem nada bom no novo e os que não vêem nada bom em tudo que não seja novo. Dessa forma, se enfatiza o classicismo do antigo, a excentricidade moderna e inclusive a charlatanice do novo.
É uma situação na qual a impostura pode imperar facilmente por certo tempo para alguns "comedores" como coisa genuína -sinal de desintegração social e de decadência da crítica "culinária".
Isso acontece por causa de uma ausência de comunicação freqüente dos "cozinheiros" com seus pares, amigos e outros artistas, e do número de "comedores" perspicazes, que se situam dentro de um público mais amplo e que tenham sido educados dentro de um gosto cultivado, em paz com a "culinária" do passado, mas com disposição para aceitar o que há de bom na atual, quando ela se dá a conhecer.
(Esses comentários sobre a crítica literária foram tirados do livro de T.S. Eliot, "To Criticize the Critic and Other Writings", e juntados ao léu. As palavras entre aspas são as minhas substituições. Achei interessante. Seria toda a crítica a mesma crítica?)

ninahorta@uol.com.br


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