São Paulo, sábado, 05 de fevereiro de 2011

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CRÍTICA ENSAIOS

Crítico galês ampliou as ciências humanas

Relançamento de "O Campo e a Cidade" comprova o abismo que separa Raymond Williams de seus diluidores

FLÁVIO MOURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Campo e a Cidade", de Raymond Williams (1921-1988), que acaba de ser lançado em edição de bolso, saiu pela primeira vez no Brasil em 1989. O autor havia morrido no ano anterior, o que fazia da publicação uma deferência: ícone da nova esquerda inglesa, Williams era até então pouco publicado em português.
O relançamento tem sentido diverso 22 anos depois. Não se trata mais de apresentar ao leitor brasileiro um autor fundamental. Agora, o ponto é indicar o abismo que o separa de seus diluidores.
Os trabalhos de Williams, iniciados nos anos 1950, são fundadores dos "estudos culturais". Nos moldes praticados por ele, tiveram papel decisivo para embaralhar noções de alta e baixa cultura e ampliar o campo de pesquisa das humanidades.
Em mãos menos hábeis, porém, aceleraram a tendência a esvaziar a análise crítica em favor de recortes politicamente corretos.
"O Campo e a Cidade" (1973) é um dos trabalhos-chave do autor. Pode ser acusado de muita coisa, mas nunca de esvaziar a análise crítica. Aos estetas que tacham Williams de "sociologizante", voltar a esse livro é exercício instrutivo. Não há argumento que não derive de leitura cerrada dos textos.
Ele mobiliza toda tradição literária inglesa que permita opor campo e cidade como indutores de uma "estrutura de sentimento".
Há achados dignos de um virtuose. Já no primeiro capítulo, ele mostra como o bucolismo da poesia renascentista inglesa é forjado: as tensões presentes nos poemas da tradição grega são eliminadas em favor de um mundo edulcorado construído a partir de condições específicas do renascimento. A sutileza e a variedade de tons com que demonstra isso rejeitam qualquer indício de esquematismo e anunciam o que vem pela frente.

MARXISMO
É verdade que a leitura avança devagar e tropeça na quantidade monumental de referências, algumas restritas ao ambiente inglês. Mas não é preciso ler na ordem: os capítulos têm autonomia e são portas de entrada para um segmento da história.
Charles Dickens (1812-1870) dá acesso à Londres da Revolução Industrial. George Eliot (1819-1880) e Jane Austen (1775-1817) indicam modos de relação da classe senhorial com os pobres. Thomas Hardy (1840-1928) ecoa a Inglaterra rural. E sempre que há a ameaça de as obras figurarem como reflexos diretos da época, o crítico literário fala mais alto e aponta em direção imprevista.
Também o marxismo de Williams não é domesticado.
Seu papel de liderança na renovação da esquerda inglesa a partir dos anos 50 tem a ver com as críticas que dirigiu ao materialismo dogmático.
No livro, fica nítido: ele é o primeiro a lembrar que as formas clássicas de comunismo e socialismo desprezam o campo, visto que as forças sociais tidas como transformadoras surgem com a industrialização. Mesmo o argumento de que a obra de Williams, em conjunto, despreza o "literário" em favor da atenção à cultura em sentido amplo tem de ser revisto. O domínio que exibe da tradição ofusca muitos autores que se ocuparam apenas de literatura.
Ainda há muito a publicar em português. Williams é autor de 29 estudos críticos, cinco romances, contos, peças, e cerca de mil artigos. No Brasil, apenas quatro livros seus estão em catálogo. E textos decisivos seguem inéditos -exemplo é o ensaio sobre o grupo de Bloomsbury, que ilumina condições por trás da obra de Virginia Woolf (1882-1941) e seus amigos.
"O Campo e a Cidade" talvez seja "inglês demais para que caia fácil no discurso internacional. Mas, com o tempo isso vai acontecer", escreveu o historiador E. P. Thompson (1924-1993) quando o livro saiu na Inglaterra. Seu ressurgimento no Brasil, tantos anos depois, mostra que ele tinha razão.


FLÁVIO MOURA é jornalista e mestre em sociologia pela USP.

O CAMPO E A CIDADE
AUTOR Raymond Williams
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Paulo Henriques Britto
QUANTO R$ 73,50 (440 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo



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