São Paulo, quarta-feira, 05 de abril de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Os lobos e os cordeiros

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Michael Ignatieff escreve na britânica "Prospect" ensaio sério sobre os usos e abusos da tortura. Nota prévia: leio Ignatieff com prazer há vários anos e a inteligência do autor merece atenção. Basta citar a biografia de Isaiah Berlin (1909-1997), escrita por Ignatieff, para ilustrar o que digo: um monumento de erudição sobre um dos mais notáveis intelectos do século 20. Intitula-se, tão só, "Isaiah Berlin: A Life" (Chatto & Windus, 356 págs.). Não conheço melhor introdução: a Ignatieff e a Berlin.
Desta vez, Ignatieff mergulha em águas profundas. E pergunta: será a tortura legítima na luta contra o terrorismo em curso? Melhor ainda: será defensável o uso da tortura para evitar situações extremas que podem ameaçar a segurança das democracias liberais? Não é possível formular essas questões de ânimo leve, exceto se estivermos na presença de um demente.
Ignatieff não é um demente. Ele entende que existem torturas e torturas. E que existe uma diferença entre o grotesco puro e simples e interrogatórios "coercivos" que as democracias utilizam de forma corrente, ainda que nem sempre assumida. De fato, existe uma diferença entre amputar um ser humano e, por exemplo, privá-lo do sono por um período.
Seja como for, a posição de Ignatieff é absoluta. Se vivemos em democracia e se as nossas democracias se distinguem da barbárie em volta, isso se deve a um fato basilar: respeitamos a dignidade da vida humana e vivemos segundo leis, não de acordo com caprichos arbitrários que violam a lei. Situações difíceis podem exigir, em teoria, opções igualmente difíceis. Mas, na prática, nem a tortura nem interrogatórios "coercivos" podem ou devem ser tolerados. Ainda que o preço a pagar seja elevado.
Entendo Ignatieff e é difícil não simpatizar com a nobreza moral da posição. Mas, pergunto, será que a nobreza moral é sempre compatível com a sobrevivência de uma sociedade sob ameaça? As dúvidas abundam. E abundam ainda mais quando sabemos que, na realidade, a informação protegida por um indivíduo sob interrogatório pode colocar em risco a vida de vários indivíduos. Conhecer a data e o local de um atentado é, por definição, conhecer a data e o local de um massacre. O cálculo não é meramente utilitário. É igualmente moral: às vezes, salvar vidas humanas pode implicar o abuso da dignidade de uma única vida humana.
Nada disso significa a legitimidade da tortura na sua expressão mais bárbara. Existe uma diferença entre a tortura sádica, ou "lúdica" (como nos crimes de Abu Ghraib, que foram investigados e punidos), e técnicas "coercivas" que, da Inglaterra aos Estados Unidos, de Espanha a Israel, foram usadas e continuam sendo usadas. Por quê? Porque, feliz ou infelizmente, resultam na maioria dos casos. E porque a ausência de uma alternativa mais "digna" acabará sempre por reconduzir as democracias, porque é delas que falamos e não de regimes ditatoriais, para alternativas mais "indignas".
Trata-se de uma escolha, sim. E, quando lemos Isaiah Berlin, o exato Berlin que Ignatieff estudou, confrontamo-nos de imediato com a natureza "agônica" das escolhas humanas: podemos desejar liberdade e segurança nas suas expressões máximas. Mas, fatalmente, valores concorrentes acabam por colidir entre si. Como Berlin afirma em metáfora clássica, a liberdade total dos lobos será sempre a morte dos cordeiros. Cabe aos homens fazer escolhas difíceis, compromissos frágeis e, muitas vezes, abandonar a nobreza absoluta de um ideal absoluto.
Nenhuma sociedade será reconhecidamente civilizada se torturar barbaramente e por capricho. Mas nenhuma sociedade será capaz de sobreviver se reduzir a complexidade da vida moral a uma luta simplória entre contrários. No mundo imperfeito em que vivemos, a opção não é entre o bem e o mal como num filme de Hollywood. É, muitas vezes, entre dois males concorrentes. Seremos criaturas com sorte se, caso a caso e quando o momento surgir, formos capazes de escolher o menor dos males.


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