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CARTAS DA EUROPA
Os lobos e os cordeiros
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Michael Ignatieff escreve
na britânica "Prospect" ensaio sério sobre os usos e abusos
da tortura. Nota prévia: leio Ignatieff com prazer há vários anos e a
inteligência do autor merece
atenção. Basta citar a biografia
de Isaiah Berlin (1909-1997), escrita por Ignatieff, para ilustrar o
que digo: um monumento de erudição sobre um dos mais notáveis
intelectos do século 20. Intitula-se, tão só, "Isaiah Berlin: A Life"
(Chatto & Windus, 356 págs.).
Não conheço melhor introdução:
a Ignatieff e a Berlin.
Desta vez, Ignatieff mergulha
em águas profundas. E pergunta:
será a tortura legítima na luta
contra o terrorismo em curso?
Melhor ainda: será defensável o
uso da tortura para evitar situações extremas que podem ameaçar a segurança das democracias
liberais? Não é possível formular
essas questões de ânimo leve, exceto se estivermos na presença de
um demente.
Ignatieff não é um demente. Ele
entende que existem torturas e
torturas. E que existe uma diferença entre o grotesco puro e simples e interrogatórios "coercivos"
que as democracias utilizam de
forma corrente, ainda que nem
sempre assumida. De fato, existe
uma diferença entre amputar um
ser humano e, por exemplo, privá-lo do sono por um período.
Seja como for, a posição de Ignatieff é absoluta. Se vivemos em
democracia e se as nossas democracias se distinguem da barbárie
em volta, isso se deve a um fato
basilar: respeitamos a dignidade
da vida humana e vivemos segundo leis, não de acordo com caprichos arbitrários que violam a
lei. Situações difíceis podem exigir, em teoria, opções igualmente
difíceis. Mas, na prática, nem a
tortura nem interrogatórios
"coercivos" podem ou devem ser
tolerados. Ainda que o preço a
pagar seja elevado.
Entendo Ignatieff e é difícil não
simpatizar com a nobreza moral
da posição. Mas, pergunto, será
que a nobreza moral é sempre
compatível com a sobrevivência
de uma sociedade sob ameaça? As
dúvidas abundam. E abundam
ainda mais quando sabemos que,
na realidade, a informação protegida por um indivíduo sob interrogatório pode colocar em risco a
vida de vários indivíduos. Conhecer a data e o local de um atentado é, por definição, conhecer a data e o local de um massacre. O cálculo não é meramente utilitário.
É igualmente moral: às vezes, salvar vidas humanas pode implicar
o abuso da dignidade de uma
única vida humana.
Nada disso significa a legitimidade da tortura na sua expressão
mais bárbara. Existe uma diferença entre a tortura sádica, ou
"lúdica" (como nos crimes de Abu
Ghraib, que foram investigados e
punidos), e técnicas "coercivas"
que, da Inglaterra aos Estados
Unidos, de Espanha a Israel, foram usadas e continuam sendo
usadas. Por quê? Porque, feliz ou
infelizmente, resultam na maioria dos casos. E porque a ausência
de uma alternativa mais "digna"
acabará sempre por reconduzir as
democracias, porque é delas que
falamos e não de regimes ditatoriais, para alternativas mais "indignas".
Trata-se de uma escolha, sim. E,
quando lemos Isaiah Berlin, o
exato Berlin que Ignatieff estudou, confrontamo-nos de imediato com a natureza "agônica" das
escolhas humanas: podemos desejar liberdade e segurança nas
suas expressões máximas. Mas,
fatalmente, valores concorrentes
acabam por colidir entre si. Como
Berlin afirma em metáfora clássica, a liberdade total dos lobos será
sempre a morte dos cordeiros. Cabe aos homens fazer escolhas difíceis, compromissos frágeis e, muitas vezes, abandonar a nobreza
absoluta de um ideal absoluto.
Nenhuma sociedade será reconhecidamente civilizada se torturar barbaramente e por capricho.
Mas nenhuma sociedade será capaz de sobreviver se reduzir a
complexidade da vida moral a
uma luta simplória entre contrários. No mundo imperfeito em
que vivemos, a opção não é entre
o bem e o mal como num filme de
Hollywood. É, muitas vezes, entre
dois males concorrentes. Seremos
criaturas com sorte se, caso a caso
e quando o momento surgir, formos capazes de escolher o menor
dos males.
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